Quando a animosidade cresce e as manifestações do gosto se sobrepõem umas às outras, lá vem a velha frase: os gostos não se discutem.
O futebol, a política, a arte, a religião, aquilo de que se fala, nada mais é do que uma categoria de apreciações, com mais ou menos oscilações, do que cada um gosta.
Sabemos que o gosto se forma através dos sentidos, do que vemos, lemos, ouvimos, mas também cheiramos ou tocamos, e da miríade de sensações e perceções resultantes do olhar e das memórias, a partir dos quais emitimos juízos de valor.
Mas é certo, também, que o conhecimento, a cultura e a experiência contribuem para que as relações entre a visão e o gosto se formem segundo padrões mais exigentes e educados.
Por outro lado, existem aspetos que se prendem com o funcionamento do cérebro que condicionam o olhar e o gosto de determinada maneira.
E há, ainda, outro aspeto, que é a ilusão ótica, em que a perceção entra em conflito com a realidade, como comprovam as figuras impossíveis e as figuras ambíguas, nas quais se debruçou o artista, holandês, Escher.
fig.1 – figura impossível
fig.2 -“O céu e o mar” (Escher)
Estas figuras conduziram ao surgimento da teoria de Gestalt, ou Teoria da Forma. Esta teoria enumera um conjunto de princípios pelos quais se organiza a perceção e a maneira como vemos a realidade.
E começa por afirmar que “o todo é diferente da soma das partes”, ou seja, a realidade do “todo” é independente das partes que o compõem.
fig.3
Assim, afirma que o cérebro tem tendência para percepcionar as formas completas, e não de uma maneira individualizada, ou seja, quando um rosto é percecionado, o que é percebido é o todo e não o nariz, depois os olhos e depois a boca, ou quando ouvimos uma orquestra, ouvimos o som do conjunto dos instrumentos e não cada um separadamente.
Paralelamente a esta maneira de ver a realidade existe um passado que condiciona a maneira de cada pessoa entender o que vê.
Outro aspeto a que esta teoria alude e Escher se debruça é a relação entre a figura e o fundo. Os processos sensoriais que permitem distinguir a figura do fundo indicam que a figura se encontra num plano mais próximo e o fundo é toda a superfície que a envolve. Mas existem situações em que ambos se impõem com o mesmo valor dando origem a diferentes percepções como exemplifica o “vaso de Rubin” , em que o olhar tem que selecionar o que escolhe para figura e para fundo, ou o “Céu e o Mar” de Escher, cujo fundo se vai transformando em figura.
fig.4 – Vaso de Rubin
A complexidade da visão e as comparações que, muitas vezes, se estabelecem com a máquina fotográfica são, ainda assim, visões distintas. Esta, “vê” de um modo passivo enquanto a ação de ver é um processo dinâmico que envolve o corpo em deslocações no espaço, a cabeça em inclinações e associações e a curiosidade em sentir o toque e a textura de modo a esticar a mão ao encontro da forma. Isto por um lado, um lado exterior; por outro, por dentro, um tráfego constante de sensações, de códigos, de memórias que se cruzam e das relações de conhecimento que se estabelecem, dos significados que se descobrem. Uma infinitude de perceções onde o que vemos é influenciado por aquilo que sabemos, e não apenas pelo que é projetado na retina.
Assim, na imagem, a linha horizontal superior é lida como maior do que a inferior.
fig.5
Deve-se essa leitura à convergência das linhas laterais que condicionam e alteram o modo de ver, pois em perspetiva, o que se afasta no espaço tende a diminuir; na realidade nada disto acontece, não existe alteração no tamanho de uma forma sempre que esta se afasta, contudo, assim é percecionada.
No segundo exemplo, os círculos centrais de ambas as figuras são igualmente do mesmo tamanho mas lidos com tamanhos distintos, devido à influência que sofrem dos restantes elementos do contexto.
fig.6
Defende a Teoria da Forma, que para uma imagem ser bem apreendida deve regular-se por princípios de simetria, de simplicidade e de regularidade, por apresentarem uma forte unidade estrutural e permitirem uma boa leitura da imagem.
Esta ideia é aplicada nos sinais de trânsito que utiliza formas geométricas básicas como o quadrado, o círculo ou o triângulo, por serem de fácil apreensão e cuja leitura não contempla distrações.
fig.7
Segundo esta teoria, a simetria é responsável pelo equilíbrio das partes, pelo que somos atraídos para conjuntos simétricos, quer porque proporcionam estabilidade, quer porque há uma identificação enquanto seres simétricos que somos.
O corpo humano desenha-se segundo um eixo vertical constituído por duas partes iguais, ou quase. No topo do eixo, o rosto é o exemplo pelo qual percecionamos e desenvolvemos sensações de prazer visual, identificando a regularidade das partes como uma sensação agradável, sabendo-se também que a simetria dos elementos que constituem a face é um fator essencial na questão da beleza.
Mas é ténue a fronteira, sobretudo numa composição plástica, entre simetria, obtida pela igualdade dos lados, e tédio, pelo que o equilíbrio do conjunto deve basear-se na distribuição visual dos pesos das formas.
Numa composição, a simetria assenta numa estrutura estática formada pelas linhas medianas, vertical e horizontal, que por sua vez nos transmitem significados determinados pelo sentido da visão e do nosso posicionamento no espaço. Assim, a linha horizontal é identificada com o mar, com o horizonte, com a terra, com o descanso e com a estabilidade, já a vertical, suscitando ainda estabilidade, pressupõe alguma energia e tensão, à qual associamos a posição vertical do ser humano, as árvores, os edifícios.
fig.8
Fig. 9 – Van Eyck, casal Arnolfini, 1434
Na primeira figura, a horizontalidade das linhas e das cores frias acentuam essa sensação de estabilidade, enquanto que no outro, a verticalidade das figuras e das linhas da porta e da janela imprimem alguma energia à pintura.
As composições demasiado estáticas podem tornar-se aborrecidas, uma vez que as apreendemos rapidamente, deixando de nos poder oferecer uma fruição estética mais prolongada.
fig. 10
Uma estrutura dinâmica tem como linhas principais, as diagonais, são linhas oblíquas que transmitem dinamismo e instabilidade.
Uma linha oblíqua é uma linha que desafia as leis da gravidade, sugere a vertigem e a queda, e, numa composição plástica ou fotográfica, a mente encontra ali um “problema” que necessita descodificar, pelo que se detém mais tempo a olhar e a compreender a composição.
A obliquidade solicita-nos a atenção e quase que nos obriga a inclinar a cabeça para acertar os elementos e encontrar a estabilidade da simetria.
Outro aspeto inerente ao ato visual é a tendência para simplificar como demonstra o exemplo.
fig.11
Perante quatro pontos dispostos como a figura “a”, o que de imediato interpretamos é a figura “b”, raramente a figura “c” e, é quase impossível a figura “d”. Ou seja, mais uma vez, a mente simplifica e percorre o caminho mais simples.
A teoria da forma, entre outros aspetos, refere princípios pelos quais somos condicionados, entre eles o da proximidade.
fig.12
Vemos o exemplo como quatro grupos de elementos que, por estarem mais próximos, imediatamente os agrupamos.
Da mesma maneira que quando vemos uma forma incompleta, mentalmente, a completamos. Entendida como uma falta, de imediato, lhe devolvemos a normalidade. Ao invés de vermos três linhas retas, vemos um triângulo, sem que, na verdade, o seja.
fig.13
Estes são alguns, dos muitos exemplos, que estruturam uma composição visual e os processos mentais que se operam em todos os seres humanos que nos condicionam para ver de uma certa maneira. Assim, poder-se-ia pensar que é tudo demasiado previsível, que vemos todos da mesma maneira, mas fatores como a cultura, a experiência e o conhecimento tocam, cada um de nós, de maneira diferente, produzindo vibrações únicas em cada ser e determinantes na formação do gosto. Dizer que se gosta ou não se gosta, comporta, sem dúvida, alguma subjetividade mas aprender a gostar, ou a não gostar, e a compreender o que se vê permite-nos afirmar que os gostos oscilam sim, mas discutem-se também.
Ana Guerreiro
Fontes das imagens:
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