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Archive for the ‘Arte e Sentidos’ Category

Através dos sentidos, percecionamos o mundo e, principalmente, pela visão, que é a responsável pela captação dos estímulos luminosos e pela perceção das imagens.

A figura 1 ilustra o mecanismo da visão dos seres humanos, mostrando a imagem do globo ocular, numa vista em corte, onde podemos perceber o processo como captamos os objetos, as imagens e tudo à nossa volta.

Assim, os objetos são projetados na retina (parte posterior do globo ocular), de modo invertido, conforme demonstra o desenho; porém, o nervo ótico procede imediatamente à correção da imagem, de maneira que nunca chegamos a ver as coisas invertidas.

Imagem1

fig.1

Este mecanismo é igual em todos nós, mas o ato de ver é diferente, pois o conjunto de conhecimentos e de informações de cada um, bem como as opiniões e as memórias que temos, interferem e conjugam-se, entrando nos circuitos neuronais no momento em que vemos e influenciando a maneira como se interpreta e, de alguma maneira, criando ilusões.

Outro aspeto importante da visão é a relação das propriedades que consideramos ser dos objetos, tais como o brilho, a cor ou o tamanho angular e que, na verdade, não são o que pode resultar em ilusões, sobretudo quando o inconsciente colide com o raciocínio consciente.

O cérebro mobiliza muitas áreas distintas, umas para o movimento, outras para a cor, outras para a profundidade, e acontece que a apreensão rápida e simplificada que fazemos do mundo que nos rodeia abre espaço para este tipo de engano e, portanto, somos iludidos por estímulos visuais e vemos coisas que não são verdadeiras.

As imagens mostram alguns exemplos.

Na primeira, as duas linhas são percecionadas com tamanhos diferentes, quando na realidade são iguais; na segunda, vemos três figuras de diferentes dimensões, o que também não é verdadeiro, pois são todas iguais, e na última, as linhas horizontais não parecem paralelas, quando, de facto, são.

Muitos artistas dedicaram grande parte do seu trabalho a explorar os efeitos da ilusão. A técnica de ” trompe l’oeil”, por exemplo, conhecida desde a antiguidade clássica, era usada para aumentar visualmente o espaço. Mais tarde,  vários artistas interessaram-se por estes efeitos ilusórios, como Andrea Pozzo,  Arcimboldo, Magritte, Escher, entre outros.

Também o movimento artístico Op Art (Optical Art), nascido nos anos sessenta do séc. XX, se dedicou ao estudo de ilusões de ótica, mostrando como é falível a visão.

As descobertas e teorias no campo da ótica, o progresso da sociedade e as incertas consequências perante o futuro, conduziram, neste período, à criação de composições artísticas rigorosas, estáticas, mas dando a impressão de contínuo movimento, numa analogia com o mundo moderno em que a estabilidade se confronta com a vertigem e com a mudança.

A partir deste movimento artístico, os alunos do 9°A e do 9°C fizeram experiências, na disciplina de Educação Visual, sobre a ilusão de ótica e realizaram trabalhos que a seguir se apresentam.

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Ana Guerreiro

 

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Os brinquedos óticos surgiram no início do séc. XIX, ainda antes do aparecimento do cinema, este, só no final, em 1895, foi apresentado publicamente através dos irmãos Lumière.

São eles o taumatrópio, popularizado em 1824 por John Ayrton Paris; depois, Joseph Plateau criou o fenaquistoscópio, em 1832; e surgiram ainda o zootrópio, o flipbook, o praxinoscópio e o teatro praxinoscópio, sendo estes dois últimos desenvolvidos e com maior aperfeiçoamento, a partir do zootrópio.

Estes engenhos, rodados a uma determinada velocidade, imprimiam movimento à sequência das imagens aí representadas, facto que intrigava e divertia uma parte da população que acompanhava as invenções e investigações científicas da época, entre as quais, a perceção visual, nomeadamente a persistência retiniana. Ora, estes objetos comprovavam esse efeito.

O fascínio pelo movimento sempre esteve presente.

 As representações mais antigas, como a arte parietal do paleolítico, por exemplo, já denotam o princípio ou a sugestão do movimento, visível em certos detalhes das figuras como a agitação das crinas ou a inclinação dos cascos. Trata-se de um movimento implícito, ao contrário do real, que implica uma deslocação de algo, no espaço, o caminhar de uma pessoa ou o voo de um pássaro.

Mas a animação das imagens tem feito igualmente o seu percurso na história, desde o remoto teatro de sombras, inventado pelos chineses, e chegado à Europa no séc. XVII, até outros como a lanterna mágica no séc. XVII, e os divertimentos óticos.

Também as teorias sobre a maneira como percecionamos o movimento foram evoluindo, tal como o próprio mecanismo da visão.

Imagem1Assim, considerando o globo ocular e o processo de apreensão da imagem: sabendo que a luz, refletida pelos objetos, entra na pupila, atravessa uma lente, o cristalino, e é projetada, invertida, na retina, onde existem milhões de células como, por exemplo, os cones e os bastonetes que nos permitem ver o mundo a cores. Os cones reconhecem as cores e, os bastonetes, a luminosidade. À noite, só os bastonetes funcionam, enquanto os cones ficam inativos, daí não vermos as cores, no escuro. Também uma anomalia nestas células, pode originar o daltonismo, dificultando o reconhecimento das cores.

A imagem ao ser projetada invertida, na retina, é, contudo, posicionada corretamente pelo cérebro.

No seguimento deste processo, a imagem permanece na retina durante uma fração de segundo após esta se afastar do campo visual.

De acordo com a teoria da persistência retiniana ou persistência da visão, se for apresentada uma sequência de imagens, a uma velocidade superior a dezasseis imagens por segundo, estas, fundem-se umas nas outras não havendo qualquer interrupção devido a essa breve permanência da imagem anterior, e originando a sensação de movimento.

Em 1912, o psicólogo checo, Max Wertheimer, um dos fundadores da Teoria da Gestalt, desenvolveu experiências em que separa diferentes movimentos: o movimento beta, segundo o qual, perante duas imagens projetadas numa tela, em extremidades opostas e em rápida sucessão, são percecionadas como apenas uma imagem que atravessa o espaço e provoca a ilusão de movimento. Este movimento beta é vulgarmente confundido com o fenómeno phi que consiste em mostrar separadamente, duas linhas que se acendem e apagam em rápida sucessão e num curto intervalo de tempo, levando o observador a afirmar ter percecionado movimento entre as duas.

Outros estudos concluem que apenas o movimento percecionado nos brinquedos óticos está de acordo com os movimentos phi e beta, não incluindo aqui o movimento do cinema, a não ser  como uma definição para a ilusão de movimento na teoria do cinema. Porém, outras questões surgem como a contestação ao conceito de observador passivo onde as imagens se projetam passivamente na retina sem que ele participe no que vê. Quer no cinema, quer na vida real, a interação com o que nos rodeia obriga a uma solicitação constante com o que se insere no campo visual, mas também com o que está fora e é essa ligação entre a nossa ação, os ângulos, a aproximação e o afastamento e o mundo em movimento que não cabe numa definição estática. O próprio Wertheimer afirmou não ser possível formular, considerando somente um processo periférico que ocorre no globo ocular, devendo examinar-se processos que se desenvolvem além da retina.

A construção de alguns brinquedos óticos em contexto de sala de aula, ilustra o processo de desenvolvimento e o fascínio do aparecimento da animação, tão diferente do que, atualmente, assistimos, onde a dinâmica do mundo virtual em que a imagem, o som e o texto acontecem em simultâneo e onde as inovações não cessam de nos surpreender, e onde a noção de tempo, tão díspar do ritmo cadenciado da primeira, se automatiza em gestos e movimentos que não contemplam recuos. Realizar um engenho destes é fazer um trajeto no tempo e experimentar a magia e a euforia dos primeiros inventores, é  compreender o fenómeno da persistência retiniana e deleitar-se com o objeto estético.

Ana Guerreiro

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Num tempo em que o plástico constitui uma ameaça para o ambiente, fazer a apologia do mesmo é não só ir contra a corrente como poder ferir suscetibilidades.

Apontado como um material nocivo, poluente, responsável pela causa de morte nos oceanos, tido como algo que as pessoas desejam freneticamente substituir, o plástico tornou-se o alvo a abater.

Patente no museu de Leiria, a exposição “Plasticidade – uma História dos Plásticos em Portugal” mostra um conjunto de objetos que vão desde materiais de construção a móveis, próteses, tintas, automóveis, computadores, obras artísticas… ilustrando como este material revolucionou a vida quotidiana.

A exposição corresponde uma das metas de um projeto coordenado por Maria Elvira Callapez, especialista em História dos Plásticos e investigadora na FCUL.

cadeira de Vernon Panton

Distinguida com o prestigiado prémio Dibner, o qual seleciona museus e exposições que melhor comuniquem ao público a história da tecnologia, da indústria e da engenharia, esta exposição apresenta outro olhar sobre este tão mal-amado material.

O surgimento do plástico, no séc. XIX, teve desde logo uma causa nobre: salvar os elefantes. Isto porque se matavam elefantes para lhes retirar o marfim dos dentes com o qual se fazia, entre outros objetos, bolas de bilhar e, dada a escassez destes animais, em determinada altura, alguém teve a ideia de lançar um concurso para o fabrico destas peças com um material sintético.

Deve-se então ao investigador inglês, Alexander Parkes, a criação do primeiro plástico, “Parkesine”. O estudo e as técnicas desenvolvidas permitiram não só a criação das bolas de bilhar como cabos de facas, travessões, botões de punho, etc mas sucederam-se alguns problemas e o material teve de ser aperfeiçoado até se instalar definitivamente. Hoje é “uma macromolécula que existe para a eternidade”, refere a mesma especialista, exaltando as suas inúmeras qualidades, tantas que conseguiu destronar os materiais tradicionais até então. Era usual a utilização de peças como baldes de zinco, pesados e barulhentos, máquinas de costura em ferro, difíceis de transportar, ferros de engomar, em ferro, entre tantos outros, impossíveis de coadunar com a vida moderna. O plástico tornou-se num material de consumo generalizado e a sua aplicação na indústria alterou não só o processo de fabrico, usando-se técnicas de moldes, como as formas dos objetos foram alteradas. A indústria do mobiliário sofreu uma autêntica revolução devido ao baixo custo, à durabilidade e à democraticidade do seu uso.

A cadeira Panton foi a primeira cadeira em plástico que rapidamente se converteu num ícone da Pop Art, produzida apenas com uma operação maquinal e feita de uma só peça, com a forma de um S, foi criada pelo designer dinamarquês Verner Panton, na década de 1960.

Mas outras áreas como a medicina, em que este material é imprescindível, quer no fabrico de próteses, válvulas que se colocam no coração, fios de operação que depois serão assimilados pelo corpo, etc, torna impensável afastá-lo do quotidiano.

Por outro lado, imagens como a que Rich Horner captou ao mergulhar no mar, na Indonésia, e à qual se referiu como “Garrafas de plástico, copos de plástico, folhas de plástico, baldes de plástico, saquetas de plástico, palhas de plástico, cestos de plástico, sacos de plástico, mais sacos de plástico, plástico, plástico, muito plástico”, alarmam-nos obviamente.

Ou a fotografia de um trabalhador chinês numa operação de reciclagem de garrafas de plástico, nos arredores de Pequim.

Fotografia de Fred Dufour

A culpa não é do plástico, insiste Maria Elvira Callapez, mas sim de comportamentos pouco cívicos, não é o plástico que mata e sim as ações de má utilização. E acrescenta que nos anos 60, nos Estados Unidos, alguns trabalhadores morreram em fábricas de plástico, tendo logo sido atribuída a causa da morte ao material, quando o que aconteceu foi a inspiração de uma substância tóxica quando esses trabalhadores entraram nos reatores, para os limpar, afirmando que hoje isso já não acontece.

O modelo de sociedade consumista, surgido após a segunda guerra mundial, desencadeou uma vertigem de consumo, fomentada pela publicidade, que continua a criar novas necessidades e ansiedades.

A urgência de travar esta onda gigantesca tem trazido à razão algumas questões sobre o equilíbrio ambiental e nomeadamente sobre a ecologia, realçando-se a importância da política dos 3 Rs (reduzir, reutilizar e reciclar). Também uma maneira de estar na vida, minimalista, emerge um pouco por todo o lado, defendendo a redução e reutilização dos produtos.

São pessoas que, cansadas do consumo excessivo, perceberam que menos é mais, um pouco à semelhança do que o arquiteto Mies van der Rohe afirmou “less is more”, quando prescindiu da ornamentação e se concentrou no essencial, no depuramento da forma. A felicidade já não passa pelos bens e produtos de consumo com que enchiam as suas casas, agora dirigem a atenção para o exterior e para os comportamentos irresponsáveis de todos nós que, movidos pelo interesse e ambição de alguns, um dia sonhámos ser felizes adquirindo mais e mais.

Portanto, torna-se urgente adotar medidas que respeitem o ambiente, que privilegiem a reutilização e só depois a reciclagem, uma reciclagem com controlo e qualidade.

Há também a boa notícia de um grupo de cientistas da universidade de Portsmouth, no Reino Unido, ter melhorado uma enzima, intitulada “PETase”, capaz de digerir polietileno tereftalato (PET), um plástico duro que leva centenas de anos a degradar-se. Tendo sido descoberta, no Japão, uma bactéria que se alojava nos sedimentos de um centro de reciclagem de garrafas de plástico, tendo depois evoluído e começado a digerir o plástico, usando-o como principal fonte de energia, e produzindo uma enzima que esses investigadores começaram a estudar de uma maneira mais aprofundada a ponto de acreditarem que pode revolucionar o processo de reciclagem dos plásticos.

O plástico veio para ficar e é impensável viver sem ele, como tal devemos respeitá-lo mais, é o que esta exposição nos diz.

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Desde que a fotografia surgiu, a comparação e a relação com a pintura foi inevitável. Contudo, a oposição de críticos que consideravam a fotografia fria e sem alma também foi imediata, de tal maneira não a aceitavam que a questão da fotografia ser ou não ser arte durou muito tempo.

Apontavam-se razões estéticas para a recusa, ao contrário da pintura, que tinha as tintas, a fotografia era uma arte sem matéria, e defendiam, os românticos, a incompatibilidade da arte com a máquina.

Aos poucos, foi-se tornando um registo, um documento que testemunha uma situação e contribui para a compreensão dos acontecimentos, um testemunho que relata o desconhecido, o exótico e que guarda cronologicamente imagens, permitindo viajar mentalmente entre o passado e o presente.

A imprensa passaria a fazer uso desta informação visual.

Mas a fotografia pretendia ser mais do que relatar situações e, sob um olhar atento, descortinavam-se outros aspetos como a criatividade, a maneira como a luz é orientada e esculpida e também a compreensão de que uma imagem pode revelar tanto o mundo exterior como o mundo interior do fotógrafo.

Atualmente, não há dúvida quanto à sua categoria de obra de arte e ao lugar que ocupa em museus e galerias, junto de outras formas artísticas.

A pintura existiu desde sempre, mas a fotografia, antes de Nicéphore Nièpce (1765/1833) ter descoberto a possibilidade de fixar uma imagem numa superfície com sais de prata e se terem realizado as primeiras fotografias, em 1826, já muito antes se conheciam alguns princípios científicos e técnicos que contribuíram para o seu aparecimento, nomeadamente a câmara escura. Considerada, no séc. XVIII, como um importante meio auxiliar para desenhar, na Antiguidade tinha sido referida por Aristóteles e, no Renascimento, por Leonardo da Vinci e Durer,  entre outros.

Mas se Nicéphore Nièpce descobre a maneira de fixar uma imagem, Louis Jacques Mandé Daguerre (1789/1851) aperfeiçoa a invenção e regista-a como daguerreótipo.

Fig 1

Fig. 1 Nicéphore Nièpce (Considerada a 1ª fotografia no mundo)

No início só é possível fixar uma imagem, tratando-se portanto de um processo dispendioso mas, mais tarde, irá contribuir para a democratização de um dos géneros mais caros à pintura: o retrato.

Tradicionalmente, a pintura é classificada em diferentes géneros –retrato, paisagem, natureza morta, nu- classificação esta, que surgiria também na fotografia, embora as fronteiras se tenham esbatido e, atualmente, ser difícil classificar o género de algumas imagens.

Outra semelhança é o facto de ambas se pendurarem nas paredes como refere Gabriel Bauret, no seu livro “A Fotografia”.

Na segunda metade do séc. XIX, alguns fotógrafos, entre eles, Félix Nadar, exercem a

Fig 2

Fig. 2 Peter Henry Emerson

profissão de retratistas, mas é com Peter Henry Emerson (1856) que se estabelece uma ponte com a pintura. Pretendendo ser reconhecido como artista da mesma maneira que o era o pintor, Emerson tornar-se-ia famoso pelas fotografias naturalistas à maneira do pintor John Constable, trabalhando a imagem no momento da impressão, adotando processos que a aproximem da pintura.

 

São vários os fotógrafos que desenvolvem o seu trabalho nesta proximidade com os géneros da pintura.

Fig 3

Fig. 3 Gustave le Gray

Gustave le Gray, (1820- 1884) segue a fotografia de paisagem e apresenta-nos paisagens marinhas que o próprio manipula.

Julia Margareth Cameron, (1815-1879) e Gertrude Käsebier (1852-1934) são duas fotógrafas que se destacam no mundo da fotografia, em primeiro lugar por serem mulheres e, depois, pela maneira como trabalham as imagens. A primeira, com fotografias que remetem para a obra de Leonardo da Vinci e, a segunda, empenhada em fotografar a maternidade, querendo mostrar que esta era uma carreira válida para mulheres. O retrato de nativos americanos foi outro tema pelo qual se interessou.

 

Mas não foram só os fotógrafos que se aproximaram da pintura, o contrário também aconteceu. O pintor Edgar Degas (1834- 1917), um entusiasta por tudo o que era efémero e desmaterializado como são as suas imagens de ballet, as luzes, os tecidos, etc., vai interessar-se pela imagem fotográfica e pintar composições descentralizadas, imagens cortadas, provavelmente, por ter fotografado uma imagem que, acidentalmente, teria ficado cortada e isso pode ter desencadeado uma nova tendência de fazer pintura. Esta forma diferente de pintar, em que as figuras aparecem “cortadas”, originou uma mudança na designação do que até aí se chamava composição para uma nova maneira mais livre e inesperada, o enquadramento.

Também o pintor Édouard Manet (1832-1883) pintará influenciado pela fotografia, ou

Fig 10

Fig. 10 “La serveuse de bocks”, Édouard Manet

seja, cortando as figuras, como é exemplo a obra “La serveuse de bocks” em que a mulher está com o braço incompleto.

Esta maneira de apresentar imagens fragmentadas é, segundo alguns autores, uma metáfora da modernidade na medida em que o corpo clássico já não existe, o homem deixa de ser o centro e a fragmentação da consciência desencadeia a fragmentação do corpo.

Neste contexto, o pintor Andy Wharol, (1928-1987) banalizou a figura humana, apresentando repetições de estrelas de cinema e da música transformadas em imagens, esvaziadas da pessoa.

A partir dos anos 60 do séc. XX, a pintura tal como era praticada vai deixando de servir aos pintores, outras questões se sobrepõem como os processos criativos e expressivos e o que conta é a ideia, o pensamento do objeto, a reflexão sobre a obra.

Nesta linha, a artista portuguesa Helena Almeida (1934-2018) ao fotografar-se com uma tela à frente do peito, vestindo-se de tela branca em oposição ao lugar das telas penduradas à parede, questiona o limite espacial da pintura.

Outras práticas artísticas, efémeras,  nomeadamente  o happening, performance, land art – esta última,  com preocupações ambientais – , esgotam-se após a sua apresentação, pelo que a utilização da fotografia como registo constitui o único testemunho.

Ana Guerreiro

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Começar uma composição visual com traçados geométricos tendo como fundo visual o painel, em pedra gravada, Começar, (1968-1969) que a Fundação Calouste Gulbenkian encomendou ao artista Almada Negreiros, foi a maneira de apresentar aos alunos, de sétimo ano, esta grande figura do século XX.

De Almada Negreiros quase ninguém ouviu falar.

Digo-lhes que foi um homem multifacetado, nascido no final do séc. XIX  (1893) em S. Tomé e Príncipe e que viveu ainda uma boa parte do séc. XX (tendo falecido em 1970), e que se dedicou às artes plásticas e à escrita.

Projeto imagens do seu trabalho artístico e mostro a imagem da escultura, junto à ribeira das Naus, em Lisboa.

Também quase ninguém conhece.

Fig. 1

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É uma obra da autoria de duas netas, a partir de um autorretrato do artista – Auto-reminiscência – (1949) que assinala os 120 anos do seu nascimento.

Da geometria da composição, sobressai o seu nome com a inicial minúscula e a haste do “d” elevada, como era costume assinar e, em cima, os olhos, inquietos e grandes, elevam-se sobre o Tejo, avistando talvez a cidade em frente a que o seu nome faz jus.

Esses olhos enormes que tantas vezes caricaturou e que o diretor do colégio interno dos jesuítas, onde esteve enquanto estudante, referiu, certo dia, após terem esbarrado num dos corredores, “…todos têm os olhos na cara, porque é que só tu tens a cara nos olhos?”

A localização da obra numa zona recentemente reabilitada, onde antes era o antigo estaleiro de construção das naus portuguesas, faz parte de uma Lisboa moderna e turística do séc. XXI e, de certo modo, são duas maneiras de apresentar a modernidade porque também Almada Negreiros foi um artista que fez parte da primeira geração de modernistas portugueses, não se confinando a uma arte conservadora onde a política pretendia controlar a criatividade e a liberdade.

Projeto outras imagens como a do Retrato de Fernando Pessoa (1964) que um ou dois alunos identificam o nome do escritor ou a de Domingo Lisboeta, (1946-1949) na Gare Marítima da Rocha de Conde de Óbidos, em Lisboa, e ninguém conhece.

Refiro que Almada Negreiros produziu muito, mas é no imenso painel Começar que nos vamos deter, também como inspiração para a composição visual de traçados geométricos aprendidos em aula e presentes igualmente na obra do artista.

Fig. 4

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Com 12,87 por 2,31 metros, esta obra, no átrio de entrada do edifício sede da Fundação Calouste Gulbenkian, reúne estudos sobre o número e a geometria a que o artista se dedicou desde o início de 1940. Trata-se de uma profusão de traçados, dispostos de um modo complexo e criativo, com pentágonos inscritos em circunferências, sobressaindo um, no centro do painel, inspirado numa moeda do tempo de D. Afonso Henriques; uma estrela de dezasseis pontas com um movimento aparente giratório, baseada na Figura superflua exerrore, geralmente atribuída a Leonardo da Vinci e, talvez o mais interessante, o traçado do Ponto de Bauhütte.

Este ponto, cujo nome provém de uma associação de construtores de catedrais com importantes conhecimentos de geometria, aparecia descrito numa quadra, e sempre que se deslocavam para algum local, estes construtores,  precisavam de provar que a sabiam, ou melhor, que detinham o conhecimento, pois este saber era transmitido em segredo.

A quadra era a seguinte:

Um ponto que está no círculo

E que se põe no quadrado e no triângulo.

Conheces o ponto? Tudo vai bem.

Não o conheces? Tudo está perdido.

O ponto de Bauhütte, representado no lado direito do painel, é uma construção desenvolvida por Almada, para determinar geometricamente o ponto descrito nessa quadra.

Fig. 5

fig.5

Trata-se de um ponto que assenta sobre um círculo, um triângulo com proporções de 3-4-5 e um quadrado.

Este tema tinha já sido abordado pelo autor, em 1957, numa bela composição a preto e branco que designou por Ponto de Bauhütte e apesar de o círculo não estar representado facilmente se deduz.

Ponto de Bauhutte

fig. 6 – O Ponto de Bauhütte, 1957

 

O painel Começar constitui uma síntese de estudos que Almada Negreiros desenvolveu, durante décadas, em torno do cânone, procurando coincidências nos elementos estruturais de polígonos e aplicando-as  à decifração de obras complexas como por exemplo a dos painéis de S. Vicente de Fora, atribuídas a Nuno Gonçalves.

Investigou a relação 9/10, presente não só na geometria como na vertente aritmética, nomeadamente na série de Fibonacci, em que a divisão do décimo termo pelo nono é praticamente igual à divina proporção: 1,618… e relaciona-a com obras de arte históricas.

Relação 9_10

fig. 7 – relação 9/10, 1957

Realiza em 1957 uma pintura a preto e branco que designa por Relação 9/10 e que faz parte de um conjunto de pinturas que revelam as suas teorias geométricas. Apesar do público e da crítica não entenderem estas obras, ainda assim foram premiadas.

Começar é, à semelhança do passado, uma obra de arte indiferente para muita gente que ali não vê mais do que um amontoado de linhas e construções geométricas, mas para outros tem sido motivo de estudo, de pôr em evidência o que é universal, e a forma através do cânone como a beleza e a verdade são intemporais.

Ana Guerreiro

Rui-Mário Gonçalves, Almada Negreiros

Gulbenkian.pt/almada-comecar

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Como um ilusionista numa ação performativa sugere que algo de sobrenatural acontece, o artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), desafiando a razão, vai suscitar o mesmo espanto e deslumbramento ao criar figuras que se transformam, que desaparecem, escadas que o observador sobe e, incompreensivelmente, começa a descer, uma confusão dos sentidos, uma distorção da perceção como até aí ninguém tinha feito.

Para entender a génese do seu trabalho, há que recuar a diversos momentos que impressionaram o artista, sendo um deles uma casa do séc XVII que habitou quando era jovem, em Amesterdão, onde havia pinturas nas portas, com a técnica de “trompe l’oeil” que o surpreendiam por parecerem baixos-relevos.

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Fig.3 Pintura de uma casa em Amesterdão, Pieter de Wit

A técnica artística de “trompe l’oeil”  proporciona o aumento visual do espaço conseguido por um efeito de ilusão de ótica onde as formas de duas dimensões aparentam ter três. Foi uma técnica utilizada na Antiguidade, em murais de Pompeia, onde eram pintadas portas, janelas ou corredores, precisamente  para causar esse alargamento visual do espaço. Foi usada no período do Renascimento, do Barroco e atualmente, em paredes cegas de edifícios urbanos.

Os frescos nos tetos de igrejas barrocas combinando a pintura com a escultura e a arquitetura, ligadas entre si, produziam um tipo de representação que impressionou Escher pela situação de conflito entre as formas tridimensionais e o plano bidimensional, a ideia de que o mundo tridimensional podia ser representado numa superfície plana e que tudo isso era uma ilusão pareceu diverti-lo.

Aprendeu técnicas de gravura artística com um professor de origem portuguesa, Samuel Jesserun de Mesquita, a quem muito se afeiçoou e cuja fotografia manteve sempre afixada no seu estúdio.

Das técnicas de gravura que aprendeu, a xilogravura, ou gravura em madeira, foi aquela em que mais se destacou.

Fig. 4

Fig. 4 Esboço feito em Alhambra, 1936

Diversificada mas com grande unidade, a sua obra é o resultado de muitas experiências e muitas pesquisas, uma delas é a divisão regular da superfície que parece ter despontado com uma visita a Alhambra onde o artista ficou impressionado com os ornamentos mouriscos e com a quantidade de possibilidades que a divisão rítmica de uma superfície permite.

Obstinado com a ideia de dividir regularmente a superfície do desenho e tendo que respeitar duas condições: a não sobreposição de desenhos e não deixar espaços por desenhar, obtém um primeiro resultado que considera insatisfatório.

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Fig. 5

Volta uma segunda vez a Alhambra, em 1936, e copia os ornamentos mouriscos, investiga-os, lê livros sobre ornamentação e ensaios matemáticos, pois a dificuldade em revestir uma superfície plana sem espaços livres e sem sobreposições foi um problema matemático que Escher levou tempo a resolver.

No dia a dia, quando observamos uma superfície preenchida com mosaicos, com uma forma poligonal regular, como por exemplo revestimentos de paredes ou de chão, podemos pensar que a repetição desse mosaico pela área a revestir servirá para preencher a superfície, mas nem sempre é assim.

A combinação dos vários mosaicos com formas poligonais, cujas arestas têm de coincidir e produzir composições geométricas é simples somente para os matemáticos que têm esse problema resolvido. Por exemplo, se tivermos um mosaico com a forma de um pentágono regular e quisermos preencher toda a área com módulos iguais, é uma tarefa impossível, pois ao unir três pentágonos regulares, a soma dos seus ângulos internos perfaz 324º, ora para fechar o espaço teria de perfazer 360º.

Fig. 5

Fig. 6

Assim sendo, o ângulo interno do polígono regular tem de ser divisor de 360º, ou seja, 120º, 90º, 60º, que é o caso do hexágono regular, do quadrado e do triângulo equilátero.

Os hexágonos regulares podem ser divididos em triângulos equiláteros, pelo que as redes que compõem a base da composição geométrica só podem ser triangulares ou quadrangulares e são essas que existem à nossa volta.

Ainda assim, há composições com pentágonos que não são regulares como os que são formados por um quadrado e um triângulo, mas são pouco usados devido à sua componente estética pouco interessante.

Em Alhambra, onde Escher terá ficado impressionado com as estruturas das superfícies e a possibilidade de módulos daí resultantes, apresentam-se alguns tipos:

Fig. 6

Fig. 7 “Osso” ou “Osso Nasrid”

Tendo por base um quadrado, são traçadas as linhas diagonais e dividida a base em quatro partes iguais a partir das quais se traçam linhas verticais nos pontos de corte dos segmentos.

Separam-se os paralelogramos que resultaram do cruzamento das linhas e colocam-se no motivo conforme a figura oito ilustra. O padrão obtido é conseguido por um efeito de repetição e translação do motivo.

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Fig.8 “Passarinho”

A figura 9 resulta de uma rede triangular em que a partir de um triângulo equilátero se traçam curvas com centro nos vértices até ao meio de cada lado, retirando-se depois as restantes superfícies.

cravo

Fig. 9 “Cravo”

O terceiro exemplo parte de um quadrado onde se desenharam dois triângulos retângulos com a hipotenusa coincidente com o lado do quadrado. Depois deslocaram-se os triângulos para fora.

Fig. 9

Fig. 10 “Criação de uma metamorfose”

Foi com muito trabalho que Escher elaborou um sistema que lhe permitiu dividir uma superfície plana para desenvolver as suas composições, o qual veio suscitar a admiração de matemáticos e cristalógrafos.

No exemplo dado tomamos conhecimento de um processo de divisão da superfície e da transformação da forma.

Nestas divisões, a metamorfose e os ciclos foram os temas dominantes.

Recorrendo a movimentos de rotação, translação e reflexão desenvolve algumas composições como a “Dia e Noite” que apresenta uma das mais simples possibilidades de preenchimento regular da superfície, destacando-se o movimento de translação do padrão das aves.

Fig. 10

Fig. 11 “Dia e noite”

Em outras composições, como a “Circulação”, surge uma figura humana, no alto, muito animada, descendo umas escadas, sem saber que aos poucos se vai transformar, perder tridimensionalidade, diluir-se com outras figuras semelhantes e, no final, cingir-se à condição de figura geométrica.

Fig 11

Fig. 12 “Circulação”

Mas a obra de Escher não se ficou só pelo preenchimento regular de superfícies, o artista empreendeu estudos no âmbito da perspetiva clássica de onde resultaram trabalhos como “Um outro mundo II” onde se pode confundir o em cima com o em baixo, a direita com a esquerda, a frente com a parte de trás, partindo de um único ponto de fuga.

Fig 12

Fig. 13 “Um outro mundo”, 1947

Na litografia “Relatividade” existem três pontos de fuga que ficam para além da imagem e que formam um triângulo equilátero com lados de dois metros de comprimento.

Nesta litografia estão representados três mundos diferentes, as figuras que os habitam têm uma noção das coisas de um modo diferente dos demais, assim o que para uns é o teto para outros é uma parede ou o que é uma porta para uns é uma abertura no chão para outros.

Fig 13

Fig. 14 “Relatividade”

Esta abordagem à obra do artista está longe de ilustrar todo o seu trabalho, não são mencionados os estudos dos sólidos geométricos, os laços de Moebius, a construção de ligações impossíveis, de mundos impossíveis, entre outros. Com uma obra tão vasta e complexa, o resultado foi a incessante procura da compreensão da realidade, das formas, dos padrões, dos ritmos, e essa compreensão só a matemática a revelou.

Presente em Lisboa, o Museu de Arte Popular apresenta uma exposição que ilustra o universo deste notável artista.

Ana Guerreiro

Bibliografia:

  • Bruno Ernst, O espelho mágico de M. C. Escher
  • National Geographic, A proporção Áurea

 

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De qual destes retângulos gostamos mais?

Fig.1

fig.1

Uma questão semelhante foi formulada por Gustav Fechner, criador da psicofísica, num estudo sobre estatística, a pessoas sem experiência artística. No desenvolvimento do estudo foram mostrados mais retângulos e também o quadrado.

As respostas não divergiram muito, tendo a maioria indicado o quarto retângulo como o seu preferido. Outros retângulos com medidas muito aproximadas deste foram, também, eleitos por uma parte considerável.

A razão dessa preferência justifica-se com a correta proporção das partes que Fechner considera, que para serem belas, do ponto de vista da forma, deve haver entre a parte maior e a menor a mesma relação que entre a maior e o todo. Neste retângulo, escolhido pela maioria, se dividirmos o lado maior pelo menor, obtemos um número, um número aparentemente singelo, bem conhecido do mundo da matemática: 1,618.

Surge com quatro algarismos mas, na realidade, estende-se por muitos mais conforme a notação aritmética :

fórmula

Conhecido, há muito, como número de ouro ou divina proporção ou, ainda, proporção áurea, tem como designação moderna, a letra grega fi (Φ) correspondente à inicial do lendário escultor e arquiteto Fídias, encarregado da construção do templo grego Parténon.

Fig.2

fig.2

O fascínio deste número deve-se à sua presença discreta em muito do que nos rodeia: da arte à natureza, passando pela forma de objetos do dia a dia até à forma de galáxias, a sua presença é a responsável pela beleza que lhes confere.

Artistas de todos os tempos, como Leonardo da Vinci, Georges Seurat, Salvador Dali, Corbusier,  entre outros, aproximaram as suas obras da perfeição ao incluírem esta proporção áurea.

Na natureza e no caso das flores e do mundo vegetal importa introduzir um conceito matemático: a sucessão de Fibonacci. Esta série matemática inicia-se com os valores 1 e 1, a partir dos quais cada novo termo é gerado pela soma dos dois anteriores. O quociente entre qualquer termo da sucessão e o precedente aproxima-se de Φ à medida que avançamos ao longo da série:

1/1= 1

2/1= 2

3/2= 1,5

5/3= 1,666…

8/5= 1,6

13/8= 1,625

21/13= 1,615384

 Φ = 1,6180339887…

Quando se chega ao quadragésimo termo da sucessão, o quociente aproxima-se do número de ouro com uma precisão de 14 casas decimais.

Ao observarmos a flor de girassol percebemos que as sementes descrevem espirais concêntricas nos sentidos horário e anti-horário. Se as contarmos, chegamos a dois números aparentemente inocentes: 21 e 34, que são dois termos sucessivos da série de Fibonacci, no caso da pinha também encontramos dois conjuntos, em cada um dos dois sentidos de rotação, com oito e treze espirais.

Outro exemplo do padrão de sucessão de Fibonacci acontece nos ramos e folhas da planta botão de prata (Achillea ptarmica) que mantém ao longo do seu crescimento esta sequência (fig.7).

fig.7

fig.7

São várias as flores com números de pétalas pertencentes à serie de Fibonacci como por exemplo as margaridas que têm 55 ou 89 pétalas, as dálias têm 43, as chicórias têm 21, a maioria dos malmequeres tem 13 (diz-se que é para bem querer, no jogo “malmequer bem me quer..”, quando se inicia por bem me quer).

Outro aspeto facilmente observável é que as folhas nunca crescem umas por cima das outras, pois se assim fosse, ficariam privadas do sol e da chuva, crescem sim, segundo um padrão que Leonardo da Vinci teve o privilégio de ser o primeiro a dar a conhecer e que consiste na organização das folhas, em grupos de cinco, ao longo do caule, segundo uma espiral.

Voltando ao retângulo de ouro e à relação com a natureza, podemos estabelecer mais relações se tivermos em conta outras construções como a espiral dourada que observamos no molusco marinho – nautilus. Este tipo de espiral é obtido numa sucessão de retângulos de ouro se traçarmos arcos de circunferência de raio igual ao lado de cada um dos quadrados que vamos retirando e com centro no vértice de cada um deles.

       

Esta forma foi desenhada pelo arquiteto Frank Lloyd Wright para a grande rampa do museu Guggenheim, de Nova Iorque.

Encontramos esta espiral tanto na  estrutura de certas formas animais como no movimento dos insetos quando se aproximam de pontos de luz, mas também na forma dos braços das galáxias ou nas pétalas de uma rosa.

Fig.10

fig.10

No dia a dia, o desejo de beleza e de satisfação faz com que certos objetos sejam concebidos almejando esta centelha divina.

Assim, simples cartões como o do cidadão ou do multibanco, alguns livros, (a proporção que se considera mais harmoniosa é 5:8 mas por desperdiçar mais papel é reservada para edições de luxo, sendo o formato 5:7 o mais habitual), vestuário, nomeadamente nas proporções entre a peça superior e a inferior, em alguns jeans, com Φ a surgir na curva do bolso da frente, nas proporções do bolso de trás e na relação entre o pesponto da anca e a costura interior das calças até à área da música em que são conhecidos os instrumentos de Antonio Stradivarius, desenhados com grande cuidado para que os furos dos violinos se situem na proporção áurea, perseguem este ideal divino.

Fig.1

fig.11

Mas existem outros retângulos que, não sendo de ouro, fazem parte do nosso quotidiano como os do exemplo da figura 11, em que o primeiro retângulo, de 16/9, corresponde ao formato dos novos televisores; o segundo, de 36/24, ao das fotografias e, o terceiro, √2, ao formato das folhas de papel, conhecido por formato DIN, de onde resulta a designação de A0, A1, A2, A3, A4… Este terceiro retângulo é também utilizado na planta de edifícios.

Outro exemplo de retângulo menos conhecido é o retângulo de prata que apresenta um formato mais alongado. Podemos observá-lo em portais de templos e em plantas de edifícios.

Fig.12

fig.12

A relação entre as formas e o pensamento numérico é de tal maneira intrínseca que se imaginarmos um mundo sem números seria como imaginar um mundo sem computadores, sem telemóveis, basicamente sem as quatro atividades fundamentais que regem uma parte da vida do ser humano: contar, ordenar, medir e codificar. E se, para contar, foi necessário atribuir números, e numa fase anterior, substituir um objeto por um grafismo, o que deu origem a uma das grandes revoluções da humanidade, a primeira linguagem simbólica, contar, iria, muito mais tarde, gerar a matemática, da mesma maneira que desenhar daria origem a outra linguagem: a da arte e a da escrita.

E se contar  ou contabilizar foi  a primeira função, ordenar implicava por em ordem, só muito depois, surgiriam as outras, mais complexas, primeiro a medição, que requer a existência de unidades padrão para cada uma das grandezas e comparação dos resultados para efetuar operações e, por fim, a codificação, que é a modificação de um sinal de modo a torná-lo mais apropriado para uma aplicação específica, o que, na sociedade atual, tem uma grande importância.

Ana Guerreiro

Bibliografia

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Quando a animosidade cresce e as manifestações do gosto se sobrepõem umas às outras, lá vem a velha frase: os gostos não se discutem.

O futebol, a política, a arte, a religião, aquilo de que se fala, nada mais é do que uma categoria de apreciações, com mais ou menos oscilações, do que cada um gosta.

Sabemos que o gosto se forma através dos sentidos, do que vemos, lemos, ouvimos, mas também cheiramos ou tocamos, e da miríade de sensações e perceções resultantes do olhar e das memórias, a partir dos quais emitimos juízos de valor.

Mas é certo, também, que o conhecimento, a cultura e a experiência contribuem para que as relações entre a visão e o gosto se formem segundo padrões mais exigentes e educados.

Por outro lado, existem aspetos que se prendem com o funcionamento do cérebro que condicionam o olhar e o gosto de determinada maneira.

E há, ainda, outro aspeto, que é a ilusão ótica, em que a perceção entra em conflito com a realidade, como comprovam as figuras impossíveis e as figuras ambíguas, nas quais se debruçou o artista, holandês, Escher.

Estas figuras conduziram ao surgimento da teoria de Gestalt, ou Teoria da Forma. Esta teoria enumera um conjunto de princípios pelos quais se organiza a perceção e a maneira como vemos a realidade.

E começa por afirmar que “o todo é diferente da soma das partes”, ou seja, a realidade do “todo” é independente das partes que o compõem.

 

Fig.3

fig.3

Assim, afirma que o cérebro tem tendência para percepcionar as formas completas, e não de uma maneira individualizada, ou seja, quando um rosto é percecionado, o que é percebido é o todo e não o nariz, depois os olhos e depois a boca, ou quando ouvimos uma orquestra, ouvimos o som do conjunto dos instrumentos e não cada um separadamente.

Paralelamente a esta maneira de ver a realidade existe um passado que condiciona a maneira de cada pessoa entender o que vê.

Outro aspeto a que esta teoria alude e Escher se debruça é a relação entre a figura e o fundo.  Os processos sensoriais que permitem distinguir a figura do fundo indicam que a figura se encontra num plano mais próximo e o fundo é toda a superfície que a envolve. Mas existem situações em que ambos se impõem com o mesmo valor dando origem a diferentes percepções como exemplifica o “vaso de Rubin” , em que o olhar tem que selecionar o que escolhe para figura e para fundo, ou o “Céu e o Mar” de Escher, cujo fundo se vai transformando em figura.

Fig. 4

fig.4 – Vaso de Rubin

A complexidade da visão e as comparações que, muitas vezes, se estabelecem com a máquina fotográfica são, ainda assim, visões distintas. Esta, “vê” de um modo passivo enquanto a ação de ver é um processo dinâmico que envolve o corpo em deslocações no espaço, a cabeça em inclinações e associações e a curiosidade em sentir o toque e a textura de modo a esticar a mão ao encontro da forma. Isto por um lado, um lado exterior; por outro, por dentro, um tráfego constante de sensações, de códigos, de memórias que se cruzam e das relações de conhecimento que se estabelecem, dos significados que se descobrem. Uma infinitude de perceções onde o que vemos é influenciado por aquilo que sabemos, e não apenas pelo que é projetado na retina.

Assim, na imagem, a linha horizontal superior é lida como maior do que a inferior.

Fig. 5

fig.5

Deve-se essa leitura à convergência das linhas laterais que condicionam e alteram o modo de ver, pois em perspetiva, o que se afasta no espaço tende a diminuir; na realidade nada disto acontece, não existe alteração no tamanho de uma forma sempre que esta se afasta, contudo, assim é percecionada.

No segundo exemplo, os círculos centrais de ambas as figuras são igualmente do mesmo tamanho mas lidos com tamanhos distintos, devido à influência que sofrem dos restantes elementos do contexto.

Fig. 6

fig.6

Defende a Teoria da Forma, que para uma imagem ser bem apreendida deve regular-se por princípios de simetria, de simplicidade e de regularidade, por apresentarem uma forte unidade estrutural e permitirem uma boa leitura da imagem.

Esta ideia é aplicada nos sinais de trânsito que utiliza formas geométricas básicas como o quadrado, o círculo ou o triângulo, por serem de fácil apreensão e cuja leitura não contempla distrações.

fig.7

fig.7

Segundo esta teoria, a simetria é responsável pelo equilíbrio das partes, pelo que somos atraídos para conjuntos simétricos, quer porque proporcionam estabilidade, quer porque há uma identificação enquanto seres simétricos que somos.

O corpo humano desenha-se segundo um eixo vertical constituído por duas partes iguais, ou quase. No topo do eixo, o rosto é o exemplo pelo qual percecionamos e desenvolvemos sensações de prazer visual, identificando a regularidade das partes como uma sensação agradável, sabendo-se também que a simetria dos elementos que constituem a face é um fator essencial na questão da beleza.

Mas é ténue a fronteira, sobretudo numa composição plástica, entre simetria, obtida pela igualdade dos lados, e tédio, pelo que o equilíbrio do conjunto deve basear-se na distribuição visual dos pesos das formas.

Numa composição, a simetria assenta numa estrutura estática formada pelas linhas medianas, vertical e horizontal, que por sua vez nos transmitem significados determinados pelo sentido da visão e do nosso posicionamento no espaço. Assim, a linha horizontal é identificada com o mar, com o horizonte, com a terra, com o descanso e com a estabilidade, já a vertical, suscitando ainda estabilidade, pressupõe alguma energia e tensão, à qual associamos a posição vertical do ser humano, as árvores, os edifícios.

Na primeira figura, a horizontalidade das linhas e das cores frias acentuam essa sensação de estabilidade, enquanto que no outro, a verticalidade das figuras e das linhas da porta e da janela imprimem  alguma energia à pintura.

As composições demasiado estáticas podem tornar-se aborrecidas, uma vez que as apreendemos rapidamente, deixando de nos poder oferecer uma fruição estética mais prolongada.

Fig 10

fig. 10

Uma estrutura dinâmica tem como linhas principais, as diagonais, são linhas oblíquas que transmitem dinamismo e instabilidade.

Uma linha oblíqua é uma linha que desafia as leis da gravidade, sugere a vertigem e a queda, e, numa composição plástica ou fotográfica, a mente  encontra ali um “problema” que necessita descodificar, pelo que se detém mais tempo a olhar e a compreender a composição.

A obliquidade solicita-nos a atenção e quase que nos obriga a inclinar a cabeça para acertar os elementos e encontrar a estabilidade da simetria.

Outro aspeto inerente ao ato visual é a tendência para simplificar como demonstra o exemplo.

Fig 11

fig.11

Perante quatro pontos dispostos como a figura “a”, o que de imediato interpretamos é a figura “b”, raramente a figura “c”  e, é quase impossível a figura “d”. Ou seja, mais uma vez, a mente simplifica e percorre o caminho mais simples.

A teoria da forma, entre outros aspetos, refere princípios pelos quais somos condicionados, entre eles o da proximidade.

Fig 12

fig.12

Vemos o exemplo como quatro grupos de elementos que, por estarem mais próximos, imediatamente os agrupamos.

Da mesma maneira que quando vemos uma forma incompleta, mentalmente, a completamos. Entendida como uma falta, de imediato, lhe devolvemos a normalidade. Ao invés de vermos três linhas retas, vemos um triângulo, sem que, na verdade, o seja.

Fig 13

fig.13

Estes são alguns, dos muitos exemplos, que estruturam uma composição visual e os processos mentais que se operam em todos os seres humanos que nos condicionam para ver de uma certa maneira. Assim, poder-se-ia pensar que é tudo demasiado previsível, que vemos todos da mesma maneira, mas fatores como a cultura, a experiência e o conhecimento tocam, cada um de nós,  de maneira diferente, produzindo vibrações únicas em cada ser e determinantes na formação do gosto. Dizer que se gosta ou não se gosta, comporta, sem dúvida, alguma subjetividade mas aprender a gostar, ou  a não gostar, e a compreender o que se vê permite-nos afirmar que os gostos oscilam sim, mas discutem-se também.

Ana Guerreiro

Fontes das imagens:

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Desenhador compulsivo e com uma capacidade de criação notável, apresenta uma vasta obra que vai da arquitetura ao mobiliário, à pintura, à escrita, até ao planeamento de cidades, Charles-Édouard Jeanneret, (1887-1965) mais conhecido por “Le Corbusier“, “parecia querer redesenhar o mundo”.

No ano em que se assinala o cinquentenário da morte deste arquiteto suíço, que se naturalizou francês, importa lembrar o trabalho que desenvolveu na área da arquitetura, num tempo em que a vida moderna obrigava a uma mudança de comportamentos e de necessidades das pessoas, muitas delas, vindas do campo para as cidades, para trabalhar em fábricas.

Fig 4

Fig 4

A resposta a este problema passou por um estudo sobre os comportamentos destas pessoas que chegavam, bem como estudos de ergonomia e de proporções com base nas medidas do corpo humano para aplicação nos espaços e equipamento, e o resultado encontra-se descrito no seu livro “O Modulor”. Desta forma, as habitações coletivas que vai desenhar, apresentam normas padronizadas de modo a abrigar um maior numero de pessoas no menor espaço possível, sem descuidar, no entanto, a higiene, a salubridade, a funcionalidade e o conforto.

A Unidade de Habitação de Marselha (1947-1952) foi um exemplo de habitação social para alojar 1800 pessoas, em áreas mínimas habitáveis. O edifício de 23 andares dispõe de um restaurante, lojas e, na cobertura, um infantário, um ginásio e uma piscina.

É nesta lógica que o arquiteto se refere às casas como “máquinas de habitar” embora os novos tempos, e com eles a civilização maquinista que o Futurismo defendeu e que tanto impressionaram Le Corbusier, contribuíssem para que tudo fosse visto como uma máquina. O escritor Paul Valéry referiu-se aos livros como sendo “máquinas de ler”, “um quadro é uma máquina para nos comover” disse o pintor Ozenfant, “a ideia é a máquina de fazer arte” concluiu Marcel Duchamp, entre tantas outras definições.

Fazendo igualmente a apologia de novos materiais e da cidade nova, e com um espírito prático sem sentimentalismos fantasiosos, vai debruçar-se sobre um trabalho do qual o rigor e a clareza formal serão a sua marca.

Fig 5

Fig 5

A encomenda de uma construção de habitações para operários e respetivas famílias, de um industrial francês, resultou num conjunto de casas despojadas de decoração, com telhados planos e compridas janelas. Corbusier parece ter comentado, com orgulho, a ausência de pormenores e de referências rurais. Porém, a reação dos habitantes não correspondeu ao que foi idealizado e após muitas horas de trabalho, fechados em fábricas, o que os operários pretendiam era tudo menos permanecerem em espaços cúbicos fechados, longe das suas antigas casas e, principalmente, do seu bocado de terra. Descontentes, e com o passar do tempo, iniciam alterações ao projeto do grande arquiteto: inclinam os telhados, de planos passam a inclinados, as janelas passam a ter persianas e intervêm também no exterior, num pequeno espaço ajardinado, em frente da casa, decorando-o com gnomos e fontes, diferenciando-se as casas de acordo com os gostos de quem a habita.

Em 1926 escreve “Os Cinco Pontos da Nova Arquitetura” onde defende plantas de andar totalmente livres, de acordo com o sistema estrutural que desenvolveu “Dom-ino”, em 1914, onde reduz a expressão arquitetónica ao mínimo, partindo de um esqueleto em betão armado fabricado com elementos padrão combináveis entre si, o que permite uma grande diversidade no agrupamento das casas.

Fig 6

Fig 6

Os outros pontos da Nova Arquitetura eram a utilização de tetos planos com terraços e jardins na cobertura; a construção apoiada em finos pilares, elevando-a do solo e conferindo-lhe elegância e, ainda, com a vantagem de evitar a humidade no edifício e de aproveitar esse espaço para estacionamento; fachadas com composição livre e janelas rasgadas em longos retângulos horizontais.

Estes princípios foram aplicados na construção da Unidade de Habitação de Marselha bem como em várias mansões entre as quais a da família Savoye. Diferente do que era convencional até então, a casa Savoye, situada em França, emerge austera, numa clareira rodeada por um denso arvoredo, impondo a brancura da sua volumetria retangular.

“A porta da frente, feita de aço, abre-se para um átrio tão limpo, claro e despojado como uma sala de operações. No chão há mosaicos, no teto lâmpadas nuas e no meio do átrio uma bacia que convida os convidados a lavarem-se das impurezas do mundo exterior.”

A casa apresentava poucas peças de decoração, no entanto, o trabalho manual das paredes, feito por artesãos, com uma argamassa importada da Suíça, e por isso muito dispendiosa, assemelhava-se a delicadas rendas, proporcionando um sentimento artístico a quem as contemplava.

O mobiliário era muito reduzido e nem quando a proprietária, a senhora Savoye, manifestou vontade de ter um cadeirão e dois sofás na sala Le Corbusier cedeu, antes, reagiu com alguma mágoa, afirmando que “a vida doméstica está hoje a ser paralisada pela ideia deplorável de que temos de ter mobília (…) Essa ideia deve ser extirpada e substituída pela de equipamento”.

O telhado plano que insistiu em construir, apesar da pouca vontade do proprietário, o senhor Savoye, apresentou infiltrações a ponto do filho do casal contrair uma infeção respiratória e, depois, uma pneumonia, e quando, numa carta, a senhora Savoye se queixa da água que entra em casa, quando chove, e que a parede da garagem fica completamente ensopada, Le Corbusier promete resolver o problema rapidamente, não sem antes informar que o design do telhado plano tinha sido elogiado pelos críticos de arquitetura de todo o mundo.

“Após inúmeras exigências da minha parte, concordou finalmente que esta casa que construiu em 1929 é inabitável” refere a senhora Savoye, em 1937. “Está em causa a sua responsabilidade e não tenho de ser eu a pagar a conta. Espero sinceramente não ter de recorrer aos tribunais” prossegue a queixosa.

Fig 7

Fig 7

De facto, não houve queixa em tribunal porque a segunda guerra mundial obrigou a família a ausentar-se do país, terminando assim a resolução do problema.

Outro projeto interessante mas que não passou do papel, foi a ideia de urbanismo de uma cidade radiosa “ville radieuse” em que o arquiteto delineou cidades revelando preocupação e cuidado quanto à diferenciação das zonas de trabalho das de lazer e de residência, e distingue três tipologias de edifício: arranha-céus, prédios de seis andares e imóveis-villa rodeados de jardins e terrenos arborizados.

Apesar do projeto nunca ter sido concretizado, contribuiu para influenciar a arquitetura e o planeamento urbano do séc. XX em obras como o projeto da cidade de Chandigarh, na Índia ou o projeto de Lúcio Costa e Niemeyer para a cidade de Brasilia, entre outras.

Fig 8

Fig 8

A igreja de Notre-Dame-du-Haut, em Romchamp, França, uma das últimas obras, assinala uma viragem no percurso do arquiteto. O jogo escultórico de volumes, pontuado por pequenas aberturas, quebra, de alguma maneira, o racionalismo das formas que sempre defendeu e é exemplo da sua capacidade de se renovar e inventar.

O arquiteto que cedo viajou pela Itália, Grécia e Turquia e contactou com a arquitetura clássica, é a partir do mar que se impressiona com a Acrópole de Atenas. O contraste entre o mar azul e as ruínas do templo pareceram-lhe o lugar mais perfeito ao cimo da terra e é nesse mar mediterrâneo que, muitos anos mais tarde, numa manhã de agosto de 1965, mergulha para não mais voltar. Afogamento? Suicídio? Quem sabe da natureza das linhas que nesse dia lhe desenharam o pensamento?

Ana Guerreiro

Bibliografia

  • “Cadernos de História da Arte”, Ana Lídia Pinto, Fernanda Meireles, Manuela Cambotas
  • “A Arquitetura da Felicidade”, Alain de Botton

Imagens

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Definir arte não tem sido consensual ao longo os tempos. Dominar técnicas e apresentar destreza manual na realização de uma obra era o bastante para assim ser considerado, mas, durante o Renascimento, foi necessário acrescentar o estudo e a experiência, e hoje, definimo-la como a  criação de objetos, imagens ou ações cuja finalidade é a fruição estética.

Mas a arte também tem sido usada para outros fins que não apenas o estético, e muitos são os casos de pessoas que a ela recorrem para aliviar o seu sofrimento como Bobby Baker, a quem foi diagnosticada uma perturbação borderline da personalidade e, num processo terapêutico, realizou muitas ilustrações que estiveram expostas em 2010, na fundação Calouste Gulbenkian, num total de 158 desenhos, que mostram as experiências em enfermarias psiquiátricas, centros terapêuticos, e retratam as situações angustiantes pelas quais a autora passou.

Outra situação é a de Jenny Schwarz, doente de fibromialgia, que se expressa através da arte para minimizar o sofrimento que a doença lhe causa, e é só nos momentos em que a doença se manifesta que Jenny Schwarz pinta.

Esta arte autêntica, que tanto interessou o pintor e teórico de arte Jean Dubuffet, produzida por  pessoas hospitalizadas com doença psíquica, crianças e também pelos pintores naïf, levou-o a criar, em 1945, a designação “Arte Bruta” para incluir todos os que expressavam uma arte pura, sem influências. Enquanto pintor, valorizou as técnicas e os materiais como parte essencial da obra às quais subordinava a forma ou até a cor. Inspirou-se na simplicidade da existência e produziu uma pintura matérica, pouco convencional, caracterizada por grossos empastes a que adicionava materiais não tradicionais e simples como areia, cartão, vidro triturado, entre outros.

Numa outra perspetiva, a arteterapia tem como objetivo o efeito terapêutico do trabalho artístico realizado por pessoas com doença psíquica, traumas e outras enfermidades, reconhecendo num fazer devidamente acompanhado, com recurso a metáforas e a um pensamento simbólico, uma maneira de aceder a camadas mais profundas onde existe o núcleo da criatividade e, aí, através de um trabalho artístico continuado, iniciar a mudança.

Fig. 6

Fig. 6

Inicia-se a representação com formas que mais não são do que projeções do eu. E, através dessas formas, o indivíduo vai tornando visível o que não compreende e iniciando a transformação.

Não se pretende ensinar arte, e muito menos formular juízos estéticos, aliás os trabalhos devem ser reservados ao sujeito e ao terapeuta e, portanto, preservados de exposições públicas porque o que se cria, naquele papel, ou em outro suporte, são partes de uma construção que se está a erguer.

Em arteterapia, são vários os recursos artísticos e técnicas das artes plásticas, bem como de outras áreas artísticas como a música, a representação, etc., e os terapeutas de acordo com a sensibilidade de cada pessoa utilizam a técnica adequada.

Dentro das artes plásticas, os materiais são fundamentais para o trabalho terapêutico, até porque eles próprios apresentam uma carga simbólica que facilita o processo de cura.

As tintas, por exemplo, propiciam a expressão e a desinibição, e mesmo o sujar as mãos ou a mesa ou seja o que for, liberta de repressões internas. E quando é realizada num suporte de grandes dimensões obriga a gestos mais amplos, a percorrer o espaço da pintura e, se o trabalho for coletivo, acentua atitudes mais soltas e extrovertidas.

No caso da aguarela, em que a tinta exige maior quantidade de água e por isso é maior a fluidez, os sentimentos e as emoções trabalhados em sessão de terapia, tornam-se também mais fluidos e difíceis de controlar. As pessoas mais rígidas ou racionais tendem a resistir à experimentação da aguarela.

Outras técnicas como a pintura a óleo propiciam outras interpretações. O solvente que se utiliza, nomeadamente a essência de terebintina, tem a função de proteger a tela, e os óleos com que se dilui a tinta, o preparar dos materiais e todo o fazer, remetem para um ritual mágico em que os óleos são utilizados para purificar e proteger.

O desenho, mais acessível a todos, mas ainda assim capaz de causar inibição, sobretudo aos adultos, é mais controlável do que a pintura. Num desenho começa-se quase sempre pelo contorno da figura, raramente se parte de dentro para fora, há a necessidade de a delimitar, de a aprisionar na linha.

Fig. 7

Fig. 7 – Henri Matisse

Outra técnica importante, em terapia, é a colagem. Inicialmente, foi levada pouco a sério, era vista como uma brincadeira, e só quando pintores como Picasso ou Georges Braque a utilizaram ou, ainda, Henri Matisse, que após uma doença grave recorreu a este “desenhar com tesouras” como lhe chamou, a colagem foi valorizada.

Dividida em duas partes: primeiro, o corte de papéis com tesoura, ou simplesmente o rasgar, que é libertador; depois, a criação com os fragmentos com a liberdade e o poder transformador que a ação sugere.

Uma outra versão de arteterapia é a moda dos livros de colorir que, segundo notícia do jornal Diário de Notícias, está a ser tão “viral”, a ponto de, entre os 12 livros mais vendidos nos Estados Unidos, metade são livros para colorir.

Johanna Basford, uma autora desses livros, é definida como “uma ilustradora que cria intrincados desenhos à mão, com inspiração na fauna e flora que rodeiam a sua casa na Escócia.” A autora de sucesso na Amazon considera que a arteterapia destes livros é parecida com a situação de se desligar do mundo: “É criativo e não assusta como uma folha em branco. Para muitas pessoas, um livro para colorir satisfaz a nível artístico e acrescenta um toque de nostalgia. Além de que, com o sucesso destes livros, o adulto não precisa de fazer como em criança, muitas vezes à noite antes de dormir e às escondidas dos pais, porque atualmente é uma prática socialmente aceite.”

Trata-se de uma atividade lúdica que requer apenas o preenchimento, com lápis de cor ou canetas de feltro, de figuras já desenhadas pelos autores dos livros. Não existe a preocupação com o desenho e com o não saber desenhar.

As pessoas que recorrem à arte como forma de tratamento de problemas mais ou menos graves ou como apaziguamento de inquietações, reconhecem, nesta atividade, uma necessidade não só de superar o sofrimento mas algo mais, inexplicável, que as transcende.

Por outro lado, há estudos que defendem a formação de símbolos como estando na base da estruturação psíquica e que, numa idade precoce, há a identificação do símbolo com o objeto, e só quando se dá a separação entre eles e se aprende a recriar novas formas se aprende, também, a lidar com a perda e o sofrimento de uma forma saudável.

Ana Guerreiro

Fontes das imagens:

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No séc. XIX, quando Edgar Degas pintou aquele quadro, não tinha, provavelmente, conhecimento de que, tão cedo, ninguém ousaria trazer a público um assunto tão sensível como esse que representou.

O próprio nome do quadro surge envolvido num certo pudor que ora oscila entre Violação, ora entre Interior, e cujo conteúdo aborda a violência no interior da casa, mais concretamente a violação sexual.

Este assunto, tabu, é único na sua obra – a profusão de bailarinas, os gestos, a leveza dos movimentos que retratou tantas e tantas vezes não fariam supor que algo tão denso manchasse o seu trabalho pictórico.

fig.1 - Degas

fig.1

No interior de um quarto há uma linha estrutural da composição que condensa em si toda a tragédia aí ocorrida. Uma figura feminina que fraqueja sobre um cadeirão e, no extremo da linha, um homem, um homem que impede a passagem. Em redor, um casaco masculino sobre a cama, um traço de sangue na colcha, uma peça íntima de roupa feminina sobre o chão e a aparente quietude do quarto suscitam no observador um estranho desconforto.

Degas dá visibilidade a este assunto nesta única obra, embora nunca tivesse sido exposta nem vendida enquanto o autor foi vivo.

Mais recentemente, Pilar Albarracín, uma artista espanhola, de Sevilha, apresenta um conjunto de narrativas, com técnicas que vão da fotografia à instalação e à performance, entre outras, que refletem sobre a vida da mulher na sociedade e o absurdo do dia a dia. Na série Diálogos imposibles representa umas facas bordadas a preto, sobre tecido branco, com uma pequenina mancha vermelha. Enquanto o bordado é tradicionalmente representado com motivos pueris, geralmente florais, aqui os motivos sugerem outras realidades que a autora quer desocultar.

fig. 2

fig. 2

Este tema da violência exercida dentro de casa é perturbador, não só pelo tema em si como também pelo lugar onde se encerra.

A casa é um ponto de referência na vida do ser humano, o lugar onde se constitui a família, a segurança, a intimidade, os sonhos.

Há muitos milhares de anos, quando o Homem se tornou sedentário, a necessidade de abrigo e de proteção dos animais selvagens e das intempéries deu origem ao aparecimento da casa. Era, inicialmente, um espaço coberto em volta de uma fogueira, mas o calor terá tocado corações e despertado consciências.

Aos poucos, ou por momentos, surgiram gestos, indícios de afeto que predispuseram a uma aproximação, ganhando o lugar nova importância, representando o sítio onde se alicerçam os afetos e onde os sonhos despontam. Surge a maternidade, a educação dos filhos e as práticas domésticas, são as mulheres que cuidam do fogo e se dedicam a atividades manuais e artísticas, são elas que conferem um poder natural à casa. A representação de pequenas estatuetas femininas desses primórdios do tempo fazem-lhe o elogio.

Desde esse tempo até à atualidade, a casa evoluiu, ganhou significados, contraditórios às vezes, pois se por um lado mantém presente a chama que, perante as incertezas e a dispersão do exterior, agrupa e estrutura o ser volátil que somos, por outro, tornou-se num objeto bem diferente, na forma de habitar, do tempo em que se nascia e morria na mesma casa e se assistia à presença inalterável do mesmo mobiliário e objetos. Hoje, a casa acompanha o desenvolvimento dos tempos junto com os seus moradores, sendo considerada um objeto onde se projetam desejos e fantasias, onde os eus se espelham e onde se procura obter um status que é inerente à casa que se possui, acreditando-se, assim, ser possível viver num invejável modelo de felicidade.

A decoração e os objetos, ao contrário dos que existiam em épocas passadas que eram simplesmente mantidos pela família numa continuidade de lembranças e de respeito aos antepassados, não têm ainda uma biografia constituída pela história dos percursos e dos seus proprietários, são peças de autor, originais, que promovem o status e o bom gosto dos moradores.

E, se nem todos conseguem atingir este patamar de satisfação, ele permanece como ideal de existência feliz.

Mas há casas, como houve em todos os tempos, sem coração que  são espaços ambíguos onde se desenrolaram e desenrolam episódios de violência.

Espaços que perderam a dignidade, onde a agressividade habita e se solta indiferentemente pelos espaços, mais ou menos ricamente decorados , casas encantadas que se tornam lugares de inquietação e horror, e às mulheres, que um dia sonharam ser princesas em casas de encantar, como as dos contos juvenis e das revistas ao lado de príncipes belos e valentes, o que lhes resta?

Rasgar o silêncio de algumas casas é o que faz Saint Hoax, um artista do Médio Oriente, que criou uma campanha Happy Never After, utilizando princesas da Disney como vítimas da violência doméstica.

Ou Alexsandro Palmobo, artista italiano, que lançou, igualmente, uma campanha No Violence Against Women, onde utiliza personagens de filmes de animação americanos para retratar o mesmo problema.

Ana Guerreiro

Fontes das imagens:

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Apreendemos a natureza pelos recortes que dela fazemos. Inatingível no seu todo, subtraímos-lhe partes com a máquina fotográfica ou com o olhar com que as representamos e, separadas em unidades isoladas, criamos paisagens.

Paisagens que são impressões dessa infinitude que é a natureza. Fragmentos de partes que a refletem. Bocados.

São a esses bocados que a visão alcança, às molduras que colocamos na natureza, que chamamos paisagens, que dão origem a criações artísticas.

Num tempo em que a visão religiosa tomou a natureza como algo a evitar porque as sensações, apercebidas através dos sentidos, se tornavam pecaminosas, sustentava o   santo Anselmo que quanto mais prazer as coisas em nós despertavam, maior era o perigo, e por isso considerava perigoso estar num jardim onde havia rosas que davam prazer pelo odor e pela cor.

Ao mesmo tempo, as pessoas também olhavam para a paisagem com desconfiança e não viam mais do que trabalho duro e perigos vários, as grandes florestas surgiam ameaçadoras, o mar impunha o medo das tempestades e da pirataria, o perigo de estar sentado junto de rosas e poder sentir prazer não se colocava.

Fig. 3 -Masaccio, Adão e Eva expulsos do Paraíso

Fig. 3 -Masaccio, “Adão e Eva expulsos do Paraíso”

A ideia de paisagem como hoje a concebemos estava ainda longe.

A mudança ocorre quando o olhar se detém nos pormenores da natureza, e este olhar, limpo, é surpreendido pela descoberta, pelo brilho das coisas simples, proporcionando o que o santo Anselmo tanto temia, mas a necessidade de atribuir significados ao que se observa, fazem das rosas e de toda a natureza envolvente imagens do divino.

Os jardins são a antevisão do paraíso, um espaço isolado do exterior, protegido com muros, onde a multiplicidade de cores, o aroma das flores e das plantas aromáticas encantam os sentidos e onde a alegria celestial está presente.

Para lá dos muros, a natureza continua ainda ameaçadora e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso exemplifica o mundo desolador que os espera. Resta-lhes apenas a

Fig. 4 - Livro de Horas, mês de maio

Fig. 4 – “Livro de Horas”, mês de maio

lembrança da paisagem perdida.

Em contrapartida, nos frescos (pintura mural) de Avignon, ou nas tapeçarias, podemos observar pessoas que desfrutam a vida ao ar livre, assim como nos livros de Horas nomeadamente Très Riches Heures, cujas ilustrações dos vários meses do ano, representam diversas ocupações e entre elas destaca-se o mês de maio com um conjunto de homens e mulheres, a cavalo, que saem da cidade para gozar os prazeres que o campo oferece.

Esta atitude de aproximação à natureza vai refletir-se na pintura, a paisagem deixa de ser apenas o fundo, o segundo plano, e na aguarela Vista do Vale do Arco, de 1495, Albrecht Dürer representa uma paisagem italiana de Arco, assumindo-a, não como fundo, mas como cena principal.

Fig. 5 - "Veduta di Arco"(1495)

Fig. 5 – “Veduta di Arco”(1495)

No oriente, a relação com a natureza foi sempre de entendimento, o ser humano era considerado parte integrante da mesma. A terra fértil e generosa em espécies fez com que os orientais acreditassem num espírito da natureza e terá sido esta ligação que desenvolveu o   conceito e a própria paisagem dentro de palácios reais, como parques, viveiros de pássaros, etc.

No Renascimento, com a descoberta da perspetiva, por Brunelleschi, e depois por Leon Battista Alberti, a paisagem é submetida à análise científica, a passagem das três dimensões do espaço para as duas dimensões do suporte e a procura de certezas estabelecidas pela matemática, conduz a uma representação que é mais uma ilusão do que uma verdade ótica.

As formas regulares que constituem determinados objetos como por exemplo uma mesa quadrangular ou retangular, são percepcionadas em

Fig. 6 - Pietro Perugino

Fig. 6 – Pietro Perugino

perspetiva, como losangos ou trapézios, o que mostra a diferença entre o conceito interiorizado das formas e como realmente as vemos no espaço.

Leonardo da Vinci, Dürer, entre outros, utilizaram uma placa de vidro com uma malha ortogonal para reproduzir os modelos dos objetos e dos edifícios enquanto tornavam visível as distorções proporcionadas pela distância e pelo ângulo, obtendo uma redução da escala à medida que a distância aumentava.

Fig. 7 - Albrecht Dürer

Fig. 7 – Albrecht Dürer

Na perspetiva não existe a visão bifocal, tudo acontece de um só ponto de vista, tudo está centrado num ponto que tudo controla e para onde todas as linhas convergem.

Quando Brunelleschi realizou as suas experiências e tentou controlar a natureza através da perspetiva, algo o surpreendeu: as nuvens. Não se confinavam ao novo modelo de paisagem, como se o céu e a terra não se entendessem quanto ao desígnio da paisagem.

Fig. 8

Fig. 8

Mas o desenvolvimento do estudo da perspetiva e a ideia do Homem como medida de todas as coisas desenham novas formas de pensamento.

Traçada a régua e esquadro, a paisagem já não é do domínio de Deus, obedece a certezas matemáticas.

O Homem é o novo criador.

Ana Guerreiro

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Quando os médicos Alfred Hardy e Aimé de Montméja publicaram a revista médica “Clínica fotográfica do hospital de Saint Louis”, em França, não tinham em mente a criação de uma obra artística, antes um trabalho científico que visasse mostrar e catalogar as doenças da pele e circulasse entre a classe médica.

As imagens, desta e de outras revistas de medicina, publicadas em 1868, eram ainda de fraca qualidade pelo que necessitavam de ser retocadas de modo a realçar as lesões da pele provocadas pela doença.

Félix Méheux, fotógrafo da revista entre 1884 e 1904, realizou esse trabalho, mas, ao mesmo tempo, dirigiu a atenção para outros aspetos de ordem estética, aos quais a sua natureza não era indiferente.

Com o olhar atento à luz, ao enquadramento, à envolvência, e, além do mais, assinando as fotografias, os médicos reconhecem-lhe mérito, mas acusam-no de produzir um trabalho que não serve para publicação.

Este “artista dermatologista”, como foi chamado, desenvolveu a técnica a cor, quando o preto e branco já não era suficiente. Esta técnica, morosa, requeria a coloração a aguarela sobre as fotografias, o que implicava um contacto mais próximo com cada doente, de modo a que o artista se detivesse a observar as lesões da pele e as especificidades de cada uma e as ilustrasse com o rigor científico que exigiam.

Esta aproximação ter-lhe-á permitido outra descoberta: a do ser humano na sua imensa tragédia. Por detrás da imensa deformação da pele de cada doente, onde manchas, bolhas, pústulas, crostas quase o ocultam, Méheux irá realçar a individualidade e, desse trabalho, sairão fotografias perturbadoras onde o horror, a raiva, a dor, o humor, se revezam e desorganizam os sentimentos.

Acusado de não homogeneizar as séries fotográficas e, como tal, não fazer trabalho científico, as fotos deveriam apresentar-se alinhadas e impessoais, classificadas de acordo com as morfologias, preenchendo, assim, as páginas da “Clínica fotográfica”.

Esta revista, com fotografias a ilustrar as doenças da pele, permite que os médicos conheçam as doenças sem a observação direta dos doentes. Mas, se a presença do médico na observação do doente podia ser dispensada e substituída pela imagem, em algumas situações, o mesmo não se poderá dizer da presença do médico nas fotografias, onde figurará desde o aparecimento desta.

Muito antes da fotografia, já as imagens gravadas em suporte de madeira mostravam as primeiras autópsias realizadas com a figura do médico ocupando uma posição de relevo mas distanciada da ação.

Fig.3- Fascículo de medicina, 1494. Reprodução de gravura em madeira

Fig.3- Fascículo de medicina, 1494. Reprodução de gravura em madeira

Esta atitude permitiu a Andreas Vesalius, no seu livro “De Humani Corporis Fabrica” (Da Organização do Corpo Humano), escrito em 1543, e considerado um dos mais influentes livros científicos de todos os tempos, escarnecer dessas figuras sentadas em cátedras que “como gaios, falam de coisas que nunca compreenderam, mas que foram buscar aos livros e as memorizaram, sem nunca as verem”.

Este lugar de destaque, nas gravuras, de alguém que ocupa uma posição privilegiada, de alguém que observa, mas distante daquele que toca, e se mantém acima dos demais, vai estabelecendo diferenças, formando hierarquias.

A figura do médico irá sair da gravura e entrar na fotografia, da sala de dissecação do cadáver para a sala de cirurgia e aí posar, sobrepondo a sua imagem à do doente.

A fotografia, e depois a radiografia, no final do séc. XIX, e o poder alcançado pelos fotógrafos e também pelos físicos, no domínio da máquina, ameaça a classe médica que tudo fará para que esse monopólio seja exclusivamente seu.

A questão intensifica-se quando técnicos, não médicos, são nomeados responsáveis pelos departamentos de radiologia do hospital.

Só a lei conseguirá impor a obrigação de um diploma em medicina para a utilização de raios X com fins diagnósticos e terapêuticos, mas respeitando as posições adquiridas por alguns não médicos.

Com o domínio da máquina e com todas as consequências benéficas que daí advêm para a saúde, a relação entre o médico e o doente altera-se.

Com a nova realidade, as palavras também sofreram alterações, são agora mais técnicas. Na relação com o doente, a máquina interpõe-se entre ambos, é ela que vê o que não é visível, é ela que pesquisa, que percorre todas as partes do corpo e expõe o interior, e o médico, perante as imagens que o ecrã lhe dita, já não diz que o doente não tem nada, mas antes, que não vê nada, sentindo-se desresponsabilizado de qualquer erro de diagnóstico.

A iconografia da doença nunca foi muito representada na história da arte, outras formas de sofrimento causadas pela ira, divina ou humana, foram, desde a antiguidade, largamente abordadas, mas a doença, propriamente dita, nunca interessou os artistas, nem mesmo aos fotógrafos quando registaram, durante a guerra, tantos corpos destroçados, nunca a doença por si só, lhes mereceu uma especial atenção.

O dedo que dispara o botão e o olho que vê, condicionados por imagens anteriores que os moldaram e ditaram hierarquias, nem sempre estão livres para ver o que sempre se quis esconder – afinal fotografar é enquadrar e enquadrar pressupõe excluir.

Provavelmente, só a proximidade com a doença, como o fez Félix Méheux ou ainda o artista japonês Tatsumi Omoto, cuja obra artística e performativa reflete sobre questões como a doença de Alzheimer de que a sua mãe é vítima, mas também sobre o envelhecimento e a falta de apoio dos familiares aos idosos (e a propósito, esteve recentemente em Portugal, em Évora, num lar de idosos), a deixou de tratar como um tema tabu que as sociedades modernas preferem remeter para  segundo plano.

Fig. 6

Fig. 6

Também conhecido por Bread Man, este artista desenvolveu o projeto Art Mama que consiste num trabalho artístico e documental do processo de envelhecimento e degenerativo da sua mãe. Cuidar e transformar esse cuidado em arte é o seu objetivo e, à semelhança das fotografias de Félix Méheux, também o seu trabalho desconcerta, também levanta questões e também desorganiza sentimentos.

Ana Guerreiro

Fontes:

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Perante as figuras, sem rosto, de Giorgio de Chirico ou de Malevitch, há uma falta que impede o reconhecimento e a identificação do outro enquanto ser.

A inexistência dos elementos que constituem a face, olhos, nariz e boca, não permite descortinar nenhuma entrada, nenhum sinal de alma.

As figuras permanecem incomunicáveis, sem essas aberturas por onde a vida passa, as ligações entre o interior e o exterior não acontecem, e os movimentos e expressões que espelham no exterior a interioridade, não existem.

Toda a face se revela no sentir, quer através de micro-expressões, quer através de alteração da cor, como se o interior pudesse a qualquer momento revelar-se na sua nudez.

Os olhos e, sobretudo, o olhar são os mais reveladores, permitem ver, perscrutar, atravessar espessuras e desmoronar falsas imagens.

Esta projeção do “eu”, no rosto, levou à necessidade de o proteger, ocultando-o de diferentes maneiras, quer com máscaras, simples acessórios que permitem fantasiar o que não se é, através da ocultação da face, interditando o olhar alheio de micro-expressões que se formam, quer com a construção de máscaras “naturais”que reproduzem tiques e algumas expressões estudadas, aprende-se a ter um rosto, a disfarçar o que verdadeiramente se é.

Mas, se as máscaras ocultam, os espelhos revelam. E, se por um lado, há a necessidade de esconder, por outro, há também a necessidade e o fascínio de olhar-se.

Restritos no início, devido à raridade e ao elevado preço, os espelhos tornam-se mais comuns com a revolução industrial. Mas é com a história da Branca de Neve e da Bruxa Má, ao consultar o seu espelho mágico (“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu”) que, este, incrivelmente sincero, aterroriza a bruxa ao responder-lhe que já existe outra mais bela, da mesma maneira que, diariamente, nos confronta com a verdade de nós próprios.

O espelho é o objeto que satisfaz a vaidade, mas é o objeto que mostra também o que está para além da superfície da imagem.

Esta verdade, cristalizada numa chapa fotográfica e, posteriormente, reproduzida, rapidamente chega à maioria das pessoas, constituindo uma mudança radical na sociedade.

Felix Nadar, 1860

Felix Nadar, 1860

Gaspar Félix Nadar (fotógrafo francês, 1820-1910) contava que as pessoas, quando tiveram oportunidade de se verem retratadas, ficavam tão deslumbradas com a veracidade da imagem que, por vezes, ao saírem do seu estúdio, nem se davam conta de que levavam consigo o retrato trocado. As pessoas queriam simplesmente ver-se, saber como eram, não importava, ainda, o que estava por detrás da imagem.

Mas muitos ficavam zangados e furiosos quando descobriam que o seu retrato não estava à altura da sua auto-imagem.

Alguns fotógrafos, à semelhança de alguns pintores de retrato, recorreram ao uso de artifícios e acessórios, que davam aos traços do rosto a valorização que, por vezes, não tinham.

Esta procura de perfeição e valorização do rosto foi o objeto de estudo de fotógrafos e pintores de retrato que, rapidamente, perceberam o impacto que este “aperfeiçoamento” causava junto das pessoas.

A procura não mais cessou, bem como as diferentes técnicas utilizadas para tornar mais belos os rostos. Apagaram-se rugas, limparam-se manchas, diminuíram-se defeitos, alteraram-se escalas –  esta capacidade de apagar registos emocionais e psicológicos dificultou assim a leitura interior.

Os rostos aparentam ser, hoje, muito felizes e perfeitos, e mesmo, quando a sós perante o espelho “espelho, espelho meu…”, este terá provavelmente dificuldade em atravessar essa estranha camada superficial como uma máscara colada à pele, e nada lhe conseguirá responder.

Um dos artistas que vem alterar toda esta encenação é Francis Bacon. A deformação e a estética do feio rompem com as imagens que se pretendem belas.

Bacon mostra a deformação, acentua-a, contrapõe à imagem manipulada e perfeita, o exagero da deformação, revela outro lado, e se o rosto transparece o interior, Bacon só mostra interiores sombrios, interiores que incomodam e que a sociedade prefere não ver.

O seu espelho devolve-lhe as imagens que tem dentro de si, e ele põe-as a descoberto, não as oculta, enfrenta-as.

Ana Guerreiro

Fontes das imagens:

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A prática do desenho foi, durante muito tempo, objeto de observação, de cópia, de repetição e de erro.

Linhas tiradas com o olhar para encontrar relações entre as partes, procura de ângulos, eixos, alinhamentos, proporções, enquadramentos e correções, muitas correções, até nascer a forma.

Depois, vinha o tratamento da superfície, a pele da forma, e estudava-se onde a luz incidia mais e onde as sombras eram mais claras e mais escuras, e assinalava-se, por fim, a textura e os detalhes.

fig.4

fig.4

Assim foi a aprendizagem do método de desenhar, baseado na observação do modelo que se pretendia reproduzir, poderia ser modelo ao vivo, ou então, cópia de obras, mas partindo sempre desta procura de linhas orientadoras.

O trabalho de grandes mestres consistiu neste processo, longo e demorado, a observar, a medir, a aprender a ver, a seguir e a reproduzir o trabalho de outros mestres, adquirindo assim destreza e capacidade de observação e memorização e, sobretudo, interiorizando  gestos e caminhos,

Com o passar do tempo, este método de desenhar caiu em desuso e foi considerado obsoleto e pouco criativo.

Figura 5

fig.5

Após as vanguardas artísticas do início do séc. XX, surgiram outras propostas, consideradas mais livres e acessíveis a qualquer um, sustentadas, também, pelo emergente apelo da psicanálise, que vem romper com um modo de fazer que vise apenas a tradução do real, e propor modelos expressivos que valorizem o mundo interior e as características da personalidade.

Pretendem trazer do subconsciente, através de uma gestualidade espontânea, conduzida por emoções, o que há de único em cada um. Esta prática permite que sentimentos de bem estar e desinibição aflorem e, consequentemente, criem condições para o desenvolvimento da criatividade.

Este conceito de criatividade também tem sido alvo de interpretações que se alteram com o tempo, consoante o juízo que se faça das suas causas.

Para Freud, era o resultado de uma experiência traumática vivida na infância e as razões que levavam o artista a produzir prendiam-se com o brincar das crianças. A brincadeira é a criação de mundos imaginários e tanto a criança como o artista criam mundos de fantasia, gerados por desejos não satisfeitos. Segundo o mesmo, quem está satisfeito não fantasia.

O ato criativo correspondia à transformação de uma mente doente numa mente saudável.

Houve, também, a crença, em tempos mais recuados, que a criatividade habitava numa das duas câmaras que existiam na mente. Em uma delas, residiam os pensamentos vulgares e na outra a criatividade, as ideias inovadoras, cuja inspiração provinha dos deuses, mas cabendo às musas, a transmissão ao artista. Era através da respiração que estas passavam as ideias criativas, daí, hoje, ainda nos referirmos à inspiração quando surge uma boa ideia.

A hereditariedade foi outra causa apontada, por alguns, como o fator preponderante da criatividade.

fig.6

fig.6

Atualmente, o termo tornou-se mais amplo e inclui fatores biológicos, psicológicos e sociais, e é aplicado não só em termos estéticos, como também numa atitude perante o mundo tecnológico e empresarial.

A criatividade é um aspeto indispensável ao trabalho do artista, como é a aprendizagem correta das diferentes técnicas. As mesmas que implicam tempo para a experimentação.

Estudos neurológicos defendem a importância da tentativa e erro, através da repetição e da cópia, essenciais à aprendizagem.

Sustentam que as estruturas mentais precisam de repetição para procederem à organização e sistematização da informação e, no caso da arte, proporcionar a automatização de gestos, facilitadores da expressividade, que, por sua vez, depende da solidez da aprendizagem.

Se a aprendizagem for distorcida, a ação será afetada e o trabalho apresentará incorreções.

Este processo prende-se com as regiões do cérebro envolvidas no controle motor, o córtex frontal e os núcleos de base. O primeiro dita as ordens e supervisiona-as,  o segundo guarda as sequências de comandos que o córtex deve dar aos músculos.

Durante a aprendizagem, os gestos necessitam de decisões constantes do córtex para serem executados, depois, uma vez bem adquiridos, dispensam as decisões do córtex, passando a ser da responsabilidade dos núcleos de base e tornam-se espontâneos.

A espontaneidade resulta, então, de uma aprendizagem consistente, de gestos bem aprendidos e menos racionalizados, isto é, são o fruto do estudo e da repetição, interiorizados em níveis cerebrais mais interiores, que se executam sem pensar.

Nas imagens seguintes, observamos que o desenho de Rembrandt é mais expressivo, e que o artista cingiu os traços ao essencial, enquanto que Christus se cingiu mais a aspetos analíticos, tais como a perspetiva, os panejamentos, entre outros.

Contudo, a desenvoltura que Rembrandt apresenta não se alcança sem que se faça uma aprendizagem lenta, semelhante ao trabalho de Petrus Christus.

Ana Guerreiro

fontes das imagens:

  • As Bases do Desenho Artístico, Círculo de Leitores
  • The Natural Way to Draw, Nicolaides
  • Desenho, Sarah Simblet
  • Desenho 12º ano, João Costa

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A presença da luz implica a presença da sombra.
A primeira, remete para um princípio, o princípio da criação e do divino.
Antes, apenas as trevas, as sombras.
Depois, a luz foi revelada e passou a ser adorada e venerada, representando o Bem, a crença na elevação a um mundo celestial.
A negação desta luz seria a negação a um mundo paradisíaco, a permanência num mundo demoníaco, de trevas e do pecado, cuja representação se encontra em bestiários, onde seres monstruosos e terríveis traduzem o imaginário mais sombrio.

Fig.1 A partir de um desenho de Pieter Bruegel, o Velho: “ Tentações de Santo Antão”.Gravura

fig.1 – A partir de um desenho de Pieter Bruegel, o Velho: “Tentações de Santo Antão”. Gravura

Durante séculos, a arte edificou o divino, a luz, como forma de culto e caminho para a salvação e, as imagens representadas, apontavam o caminho.
O movimento do olhar que se desloca de Deus e se aproxima da natureza, levará ainda vários séculos.
Só no Renascimento, com o homem como medida de todas as coisas, há uma separação entre a luz do divino e a luz da matéria. A luz que projetará sombras, e cuja representação da realidade, dará a conhecer o mundo como um sítio escuro. Vários foram os artistas que desenvolveram um trabalho acerca desta questão da luz e da sombra, como por exemplo, Leonardo da Vinci, que tinha como objetivo dar a impressão de tridimensionalidade, através do claro-escuro, a imagens bidimensionais.Também Rembrandt ou Goya, cujas obras são marcadas pela intensidade da sombra.
Columbano Bordalo Pinheiro também se rodeou de ambientes obscuros para retratar os seus personagens.
Estes ambientes obscuros, em que as formas, ocultas pela penumbra, só, em parte, são desveladas, foi muito apreciado pelos orientais.
Desde a antiguidade que as pinturas, em vez de se pendurarem, eram enroladas e guardadas num compartimento escuro, só retiradas para a luz, em privado, para deleite de alguns. Este comportamento devia-se, não só ao gosto por um lado mais escuro da vida, como ao conhecimento que tinham do ser humano e da sua capacidade de admiração limitada.
Mas, dos vários artistas que desenvolveram essa estética, foi Lourdes de Castro quem verdadeiramente se debruçou sobre o conceito de sombra. Começou por fixar, no papel, objetos, tais como, bonecos, cabides, pequenas coisas, e passou, depois, para as telas, as silhuetas dos amigos, imortalizando-as.

As silhuetas ou sombras, remetem para aquilo que Plínio, o Velho, escreveu sobre a origem do desenho.
Refere, Plínio, que uma jovem vê a sombra do seu amado projetada pela luz de uma lamparina, na parede, quando este se prepara para a abandonar, e a jovem retem a sua imagem, desenhando o contorno da silhueta.
O desenho terá nascido, então, de um ato de amor.
A necessidade de segurar o que se prepara para partir ou de desejar a presença de quem está ausente poderá ser lido, também, na obra desta artista. Querer o que não se tem, ficar apenas com uma parte, com a sua sombra.
Contudo, a sombra não é, para Lourdes de Castro, uma mancha cinzenta e fria, uma vez que a cor está, por vezes, presente em várias sombras, há uma aceitação do que fica, e por isso, guarda os gestos dos amigos. São gestos simples do dia a dia, como fumar um cigarro, ler um livro, pentear o cabelo, que são fixados, primeiro, na tela e, depois, em plexiglas (uma espécie de acrílico) como que querendo acrescentar materialidade àquilo que é efémero e frágil.
A sombra já não acarreta o peso dos séculos, os impressionistas retiraram-lhe essa carga, ao pintá-las, não com tons escuros, mas com fortes contrastes cromáticos, de acordo com as cores complementares.

fig. 6 - Renoir “Piazza San Marco”

fig. 6 – Renoir “Piazza San Marco”

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fig. 7 – Claude Monet “Impressão

A sombra condicionou, ao longo dos tempos, a maneira do ser humano olhar o mundo e de se olhar a si próprio. Os pensamentos e comportamentos mais sombrios foram reprimidos e relegados para uma zona escura e espessa de cada indivíduo, formando uma outra entidade, um negativo do próprio ser. E esta ideia de negativo remete para o conto “A História Fabulosa de Peter Schlemihl”, que fascinou a artista, em que a privação da sombra é vista como uma desgraça que se abate sobre um homem, um homem sem sombra é uma maldição, uma incompletude, alguém que vive à margem do seu negativo.
Os negativos da Lourdes de Castro são outra coisa, algo que não remete para uma zona escura, mas, com os quais convive.
De tal forma os estuda e se debruça sobre eles, quase obsessivamente, que os leva ao extremo, depurando-os até serem pouco mais que uma linha, uma fronteira entre a forma e o vazio, ou entre a matéria e a alma.

fig. 8

fig. 8

 O interesse pelo teatro de sombras chinesas proporcionou-lhe a criação do movimento. Não são marionetas, é a própria artista que se projeta a si própria.
O seu trabalho de sombras passará para outra etapa, da vertical para a horizontal, da parede para os lençóis, onde bordará as silhuetas dos amigos, sempre os amigos.

Ana Guerreiro

 

Imagens acedidas em:

 

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Os materiais de desenho e pintura, nomeadamente lápis e pincéis, enquanto utensílios da criação da obra, podem ser comparáveis aos deuses da mitologia grega, com o mesmo poder de atribuir uma existência, uma presença.

Apolo

Apolo

Segundo a mitologia, Zeus, o deus supremo, atribuiu aos deuses uma medida apropriada e um limite certo para cada um. Apolo, o deus da luz e das artes, representa o ser que se eleva com uma imagem gloriosa que se caracteriza pelo equilíbrio e moderação, e Dionísio, o deus das festas e do vinho, o ser emotivo, exuberante e instável.

Dionísio

Dionísio representado numa ânfora
 500-495 a.C., Munique

Apolo representa a ordem e a harmonia e, Dionísio, o caos e a infração desenfreada a todas as regras.

Na realização de uma obra artística, os materiais utilizados, nomeadamente lápis e pincéis, apresentam uma singularidade nos registos tão antagónica quanto Apolo e Dionísio, deuses feitos à semelhança e imagem dos homens, com as mesmas virtudes e caprichos da alma humana.

De tal modo, que podemos definir o lápis como apolíneo pelo que de implícito contém, o rigor, a precisão, a análise, o que o aproxima de uma linha de pensamento mais analítica e dissecadora, bem como das quatro máximas escritas nas paredes do templo de Delfos, onde Apolo figura entre as musas, “O mais justo é o mais belo”, “Observa os limites”, “Odeia a hybris (arrogância e presunção)” e “Nada em excesso”.

lápisO pincel depende da tinta, sem a qual nada faz.

Na pintura de um trabalho, necessita, frequentemente, de mergulhar no caos da tinta, dissolver-se, embriagar-se de cor, e elevar-se, pincéisnum eterno ciclo.

À superfície da tela, a mancha, a intensidade emotiva. A expressão dionisíaca.

Enquanto o lápis é um instrumento mais próximo do pensamento, o pincel está mais próximo das emoções e dos afetos.

O primeiro é, sem dúvida, o mais acessível e facilitador de quase tudo, desde o desenho infantil ao desenho mais complexo. É com ele que aprendemos os primeiros traços e é com ele que ficamos durante toda a escolaridade, podendo, ainda, acompanhar-nos pela vida fora.

Rubens, A Batalha das Amazonas, 1615

Rubens, A Batalha das Amazonas, 1615

O manuseamento ou o modo como se pega no lápis é fundamental, de tal forma que o professor Itten, da escola de artes, da Bauhaus, iniciava as aulas de desenho com exercícios de dança, ginástica e exercícios respiratórios para descontrair todo o corpo.

Com um corpo escorreito e graus de dureza que oscilam entre o 10H (Hard) mais dura, e o 9B (Brand/Black) mais macia, a dureza da grafite escolhe-se consoante a nossa personalidade e o trabalho a realizar.

Os lápis com grafite de maior dureza permitem uma análise exaustiva e são utilizados num tipo de desenho mais específico, como o técnico, por exemplo, por proporcionarem maior precisão, não espalharem partículas e com isso não sujar o papel. A linha mantém uma largura constante, sem margem para variabilidades expressivas, o que acentua o seu traço apolíneo.

Os lápis mais macios permitem um registo mais expressivo, mas, ainda assim, passível de correção.

Existindo para servir fielmente o lápis, a borracha é o seu instrumento auxiliar. A ação corretora que exerce sobre o papel omite um eventual deslize daquele, retirando, de imediato, qualquer vestígio que manche a imaculada folha.

Picasso

Picasso

Mais complexo na sua constituição física, o pincel apresenta um cabo, geralmente, de madeira, e uma cinta metálica que liga o cabo ao pêlo.

O cabo pode apresentar-se mais ou menos longo. Os cabos longos utilizam-se, sobretudo, na pintura a óleo e acrílica, enquanto os mais curtos se utilizam na pintura a aguarela ou a guache.

axonometria

axonometria

A cinta metálica pode ser de alumínio, latão, cobre, entre outros, mas é no pêlo que o pincel concentra a sua principal qualidade, consoante o animal de onde provém. Pode ser de porco, coelho, vaca, entre muitos outros, destacando-se o de marta, quer pela sua raridade, quer pela sua maciez que lhe confere uma boa fluição em trabalhos mais delicados.

O pincel estabelece, desde logo, com o utilizador, uma empatia, quer pela sedosidade do toque do pêlo na pele, quer pelo convite implícito à experiência, à tentação.

Desenhar com um lápis, permite ter uma consciência ativa sobre o que se está a desenhar, o artista observa o que é exterior a si, avalia, ordena, mobiliza a atenção e o olhar numa sincronia entre a mão, o olho e o cérebro. Traz para dentro o que está fora, e avalia, analisa, raciocina, desenha.

O pincel apresenta outra dinâmica, propõe o inverso. Traz para o exterior o que é interior, obscuro, dando origem a obras de cariz mais emotivo e expressivo.

Jean Miotte, Libertação, 1960

Jean Miotte, Libertação, 1960

Estas duas atitudes, representam aquilo que, para Nietzsche, era o antagonismo existente na pulsão artística.

Independentemente da natureza de cada um destes utensílios e do modo como poderão ser usados, é a natureza do artista, do ser humano, que emerge e se fixa ao suporte.

A arte, tal como a vida, representada no seu aspeto mais paradoxal; a exuberância e a sobriedade, o impulso e a contenção, a força e a fragilidade, no movimento contínuo da criação.

 Bibliografia/fontes:

  • “O Desenho, Ordem do Pensamento Arquitectónico”, Ana Leonor M.Madeira Rodrigues
  • “História da Beleza”, Direcção de Umberto Eco
  • “Desenho 10”, João Costa
  • pt.wikipedia.org

Ana Guerreiro

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