Quando os médicos Alfred Hardy e Aimé de Montméja publicaram a revista médica “Clínica fotográfica do hospital de Saint Louis”, em França, não tinham em mente a criação de uma obra artística, antes um trabalho científico que visasse mostrar e catalogar as doenças da pele e circulasse entre a classe médica.
As imagens, desta e de outras revistas de medicina, publicadas em 1868, eram ainda de fraca qualidade pelo que necessitavam de ser retocadas de modo a realçar as lesões da pele provocadas pela doença.
Félix Méheux, fotógrafo da revista entre 1884 e 1904, realizou esse trabalho, mas, ao mesmo tempo, dirigiu a atenção para outros aspetos de ordem estética, aos quais a sua natureza não era indiferente.
Com o olhar atento à luz, ao enquadramento, à envolvência, e, além do mais, assinando as fotografias, os médicos reconhecem-lhe mérito, mas acusam-no de produzir um trabalho que não serve para publicação.
Este “artista dermatologista”, como foi chamado, desenvolveu a técnica a cor, quando o preto e branco já não era suficiente. Esta técnica, morosa, requeria a coloração a aguarela sobre as fotografias, o que implicava um contacto mais próximo com cada doente, de modo a que o artista se detivesse a observar as lesões da pele e as especificidades de cada uma e as ilustrasse com o rigor científico que exigiam.
Esta aproximação ter-lhe-á permitido outra descoberta: a do ser humano na sua imensa tragédia. Por detrás da imensa deformação da pele de cada doente, onde manchas, bolhas, pústulas, crostas quase o ocultam, Méheux irá realçar a individualidade e, desse trabalho, sairão fotografias perturbadoras onde o horror, a raiva, a dor, o humor, se revezam e desorganizam os sentimentos.
Acusado de não homogeneizar as séries fotográficas e, como tal, não fazer trabalho científico, as fotos deveriam apresentar-se alinhadas e impessoais, classificadas de acordo com as morfologias, preenchendo, assim, as páginas da “Clínica fotográfica”.
Esta revista, com fotografias a ilustrar as doenças da pele, permite que os médicos conheçam as doenças sem a observação direta dos doentes. Mas, se a presença do médico na observação do doente podia ser dispensada e substituída pela imagem, em algumas situações, o mesmo não se poderá dizer da presença do médico nas fotografias, onde figurará desde o aparecimento desta.
Muito antes da fotografia, já as imagens gravadas em suporte de madeira mostravam as primeiras autópsias realizadas com a figura do médico ocupando uma posição de relevo mas distanciada da ação.
Esta atitude permitiu a Andreas Vesalius, no seu livro “De Humani Corporis Fabrica” (Da Organização do Corpo Humano), escrito em 1543, e considerado um dos mais influentes livros científicos de todos os tempos, escarnecer dessas figuras sentadas em cátedras que “como gaios, falam de coisas que nunca compreenderam, mas que foram buscar aos livros e as memorizaram, sem nunca as verem”.
Este lugar de destaque, nas gravuras, de alguém que ocupa uma posição privilegiada, de alguém que observa, mas distante daquele que toca, e se mantém acima dos demais, vai estabelecendo diferenças, formando hierarquias.
A figura do médico irá sair da gravura e entrar na fotografia, da sala de dissecação do cadáver para a sala de cirurgia e aí posar, sobrepondo a sua imagem à do doente.
A fotografia, e depois a radiografia, no final do séc. XIX, e o poder alcançado pelos fotógrafos e também pelos físicos, no domínio da máquina, ameaça a classe médica que tudo fará para que esse monopólio seja exclusivamente seu.
A questão intensifica-se quando técnicos, não médicos, são nomeados responsáveis pelos departamentos de radiologia do hospital.
Só a lei conseguirá impor a obrigação de um diploma em medicina para a utilização de raios X com fins diagnósticos e terapêuticos, mas respeitando as posições adquiridas por alguns não médicos.
Com o domínio da máquina e com todas as consequências benéficas que daí advêm para a saúde, a relação entre o médico e o doente altera-se.
Com a nova realidade, as palavras também sofreram alterações, são agora mais técnicas. Na relação com o doente, a máquina interpõe-se entre ambos, é ela que vê o que não é visível, é ela que pesquisa, que percorre todas as partes do corpo e expõe o interior, e o médico, perante as imagens que o ecrã lhe dita, já não diz que o doente não tem nada, mas antes, que não vê nada, sentindo-se desresponsabilizado de qualquer erro de diagnóstico.
A iconografia da doença nunca foi muito representada na história da arte, outras formas de sofrimento causadas pela ira, divina ou humana, foram, desde a antiguidade, largamente abordadas, mas a doença, propriamente dita, nunca interessou os artistas, nem mesmo aos fotógrafos quando registaram, durante a guerra, tantos corpos destroçados, nunca a doença por si só, lhes mereceu uma especial atenção.
O dedo que dispara o botão e o olho que vê, condicionados por imagens anteriores que os moldaram e ditaram hierarquias, nem sempre estão livres para ver o que sempre se quis esconder – afinal fotografar é enquadrar e enquadrar pressupõe excluir.
Provavelmente, só a proximidade com a doença, como o fez Félix Méheux ou ainda o artista japonês Tatsumi Omoto, cuja obra artística e performativa reflete sobre questões como a doença de Alzheimer de que a sua mãe é vítima, mas também sobre o envelhecimento e a falta de apoio dos familiares aos idosos (e a propósito, esteve recentemente em Portugal, em Évora, num lar de idosos), a deixou de tratar como um tema tabu que as sociedades modernas preferem remeter para segundo plano.
Também conhecido por Bread Man, este artista desenvolveu o projeto Art Mama que consiste num trabalho artístico e documental do processo de envelhecimento e degenerativo da sua mãe. Cuidar e transformar esse cuidado em arte é o seu objetivo e, à semelhança das fotografias de Félix Méheux, também o seu trabalho desconcerta, também levanta questões e também desorganiza sentimentos.
Ana Guerreiro
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