Promotora praticamente desde o início da publicação do Bibli dos trabalhos-desenhos dos alunos do básico através do Diário Gráfico, Ana Guerreiro propõe-se agora iniciar uma nova rubrica – Arte e Sentidos – onde pretende abordar a arte, especificamente as artes plásticas, conjuntamente com outros contextos humanos – como é o caso deste artigo inaugural, em que associa os períodos históricos do desenvolvimento do desenho aos do desenvolvimento humano: as “idades do desenho”.
O desenho apresenta uma genealogia idêntica às diferentes fases do desenvolvimento mental do ser humano. Assim sendo, é possível estabelecer uma comparação entre a história do desenho e o desenho infantil.

fig.1 – Meandros
As primeiras manifestações, de que há registo, situam-se na pré-história, no Paleolítico. Não são ainda propriamente manifestações artísticas, contudo, revelam uma vontade de expressar ou imitar o mundo envolvente. Constituídos por pontos e linhas, os meandros, gravados na argila das paredes das grutas, resultaram, talvez, da observação de sulcos dos animais, ao rasparem os cascos no chão.

Fig.2 – Desenho de criança com 2 anos e meio de idade
Também a criança, numa fase inicial, começa por marcar as superfícies com pontos e traços a partir de movimentos musculares do ombro e, normalmente, da direita para a esquerda. Depois, numa tentativa de definição da forma, principia a circunferência com linhas circulares decorrentes de uma deslocação do gesto. O movimento torna-se natural e o ombro, braço e mão propiciam o aparecimento da forma.
A linha circular será a base da sua representação e, entre os dois e os três anos, servirá para expressar quase tudo, embora a figura humana se torne o tema preferido.

Fig.3 – Vénus de Willendorf
Porém, quando delineia uma circunferência, não o faz na tentativa de reproduzir um contorno particular de uma cabeça, mas antes aquilo que perceciona como uma qualidade formal das cabeças em geral. O mesmo se passa com as pequenas peças escultóricas do Paleolítico, as Vénus, que não apresentam definição do rosto, tratando-se, portanto, de uma representação abstrata da mulher e não retratando nenhuma em particular.
Por volta dos quatro anos, a figura humana apresenta uma linha circular a representar a cabeça e o tronco é, muitas vezes, inexistente. Os braços, nem sempre assinalados, e as pernas pendem diretamente da cabeça. Alguns detalhes são, depois, acrescentados, tais como linhas que rematam os braços numa tentativa de desenhar as mãos, mas esboçando apenas os dedos. Nasce, assim, a figura humana no seu estado mais larvar.
Por volta dos cinco anos, os desenhos contam histórias, recorrendo ao exagero da forma para realçar o significado, como exemplifica a figura.

No período Neolítico, podemos presenciar também um conjunto de figuras que demonstram a necessidade de narrar o quotidiano tal como a vida em grupo, as cerimónias, as caçadas ou as cenas domésticas.

Fig.5 – Excerto do friso da gruta de Cogul (Espanha)
Muito ocasionalmente, a paisagem aparecia sugerida com uma linha ondulante propondo a visão de uma montanha.
E é entre os cinco e os seis anos que a introdução de uma linha horizontal (linha do horizonte) assinala a noção da terra, em baixo, e do céu, em cima, ou seja, o tema da paisagem. Esta noção é acentuada com a aplicação da cor, respetivamente do verde e do azul, mas, também, de outros elementos como a casa, quase sempre assente na linha do horizonte, ou as árvores.
No azul, surgem as nuvens e o sol, em simultâneo.
Na idade escolar, a produção de desenhos diminui, uma vez que é dada prioridade à escrita, contudo, não desaparece, e assistiremos, mais tarde, a uma ligação entre as duas. As letras passarão por alterações e variações formais: enrolamentos de linhas, e alteração da escala.
Alguns pintores contemporâneos como, por exemplo, Joan Miró debruçou-se, de alguma maneira, sobre esta aproximação entre a escrita e o desenho, ao introduzir nos seus trabalhos uma linguagem de sinais que desenvolve, mais significativamente, durante a segunda guerra. A sua obra é uma procura da caligrafia do mundo, através de símbolos poéticos, sinais caligráficos de linguagem, formas, técnicas, é uma busca da síntese entre a forma e o espírito numa aproximação à pintura zen budista.
Por volta dos dez anos e, provavelmente por razões culturais, verifica-se, claramente, uma diferença nos temas abordados. Enquanto os rapazes desenham automóveis, cenas de guerra, figuras heróicas, as raparigas esboçam, sobretudo, figuras femininas ou elementos florais com cores vivas.
O gosto pelo detalhe vai conferir um maior realismo e complexidade aos desenhos, mas, ainda assim, o que estes representam não corresponde propriamente ao que os jovens vêem e sim, ao que sabem sobre o que estão a desenhar.
Uma explicação para este facto reside no hemisfério esquerdo do cérebro, uma vez que este não necessita de muita informação para apreender as formas, apenas o suficiente para as reconhecer e identificar. A partir do momento que as classifica como, por exemplo, cadeira, árvore, cão, pessoa, não se detém mais sobre o assunto, já as identificou e não se prende mais, e o desenho vai traduzir essa visão rápida, esse entendimento superficial.

Fig. 6 – Desenho realizado por criança de 12 anos
No exemplo (fig. 6), podemos observar que o ponto de vista escolhido para representar o olho da figura foi em função daquilo que a criança sabe que é um olho e não o resultado de uma observação atenta.
Aqui podemos estabelecer outra comparação com os antigos egípcios. A figura humana aparecia representada segundo a lei da frontalidade, isto é, com dois pontos de vista diferentes, que são os que oferecem maior informação. Assim, os olhos, ombros e peito são mostrados de frente, e a cabeça e as pernas, de perfil.

Fig. 7 – Sacerdote com pele de leopardo
Desenhar bem pressupõe uma capacidade de ver as coisas como são na realidade, e o progresso na representação de objetos é laborioso e lento, e só com um olhar treinado se consegue permanecer numa pesquisa incessante de todas as variações, linhas e subtilezas.
Se desistirmos ou pararmos de desenhar, na idade escolar, o mais certo é permanecermos com um desenho infantil que não evoluiu.
Referências e fontes:
- Drawing on the Right Side of de Brain, Betty Edwards
- Cadernos de História da Arte 3, Ana Lídia Pinto; Fernanda Meireles; Manuela Cernadas Cambotas
- A Educação pela Arte, Herbert Read
- Miró, Stephen Butler
- Desenho 10º, João Costa
Ana Guerreiro
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