Apreendemos a natureza pelos recortes que dela fazemos. Inatingível no seu todo, subtraímos-lhe partes com a máquina fotográfica ou com o olhar com que as representamos e, separadas em unidades isoladas, criamos paisagens.
Paisagens que são impressões dessa infinitude que é a natureza. Fragmentos de partes que a refletem. Bocados.
São a esses bocados que a visão alcança, às molduras que colocamos na natureza, que chamamos paisagens, que dão origem a criações artísticas.
fig. 1 – Monet
fig. 2 – Cézanne
Num tempo em que a visão religiosa tomou a natureza como algo a evitar porque as sensações, apercebidas através dos sentidos, se tornavam pecaminosas, sustentava o santo Anselmo que quanto mais prazer as coisas em nós despertavam, maior era o perigo, e por isso considerava perigoso estar num jardim onde havia rosas que davam prazer pelo odor e pela cor.
Ao mesmo tempo, as pessoas também olhavam para a paisagem com desconfiança e não viam mais do que trabalho duro e perigos vários, as grandes florestas surgiam ameaçadoras, o mar impunha o medo das tempestades e da pirataria, o perigo de estar sentado junto de rosas e poder sentir prazer não se colocava.

Fig. 3 -Masaccio, “Adão e Eva expulsos do Paraíso”
A ideia de paisagem como hoje a concebemos estava ainda longe.
A mudança ocorre quando o olhar se detém nos pormenores da natureza, e este olhar, limpo, é surpreendido pela descoberta, pelo brilho das coisas simples, proporcionando o que o santo Anselmo tanto temia, mas a necessidade de atribuir significados ao que se observa, fazem das rosas e de toda a natureza envolvente imagens do divino.
Os jardins são a antevisão do paraíso, um espaço isolado do exterior, protegido com muros, onde a multiplicidade de cores, o aroma das flores e das plantas aromáticas encantam os sentidos e onde a alegria celestial está presente.
Para lá dos muros, a natureza continua ainda ameaçadora e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso exemplifica o mundo desolador que os espera. Resta-lhes apenas a

Fig. 4 – “Livro de Horas”, mês de maio
lembrança da paisagem perdida.
Em contrapartida, nos frescos (pintura mural) de Avignon, ou nas tapeçarias, podemos observar pessoas que desfrutam a vida ao ar livre, assim como nos livros de Horas nomeadamente Très Riches Heures, cujas ilustrações dos vários meses do ano, representam diversas ocupações e entre elas destaca-se o mês de maio com um conjunto de homens e mulheres, a cavalo, que saem da cidade para gozar os prazeres que o campo oferece.
Esta atitude de aproximação à natureza vai refletir-se na pintura, a paisagem deixa de ser apenas o fundo, o segundo plano, e na aguarela Vista do Vale do Arco, de 1495, Albrecht Dürer representa uma paisagem italiana de Arco, assumindo-a, não como fundo, mas como cena principal.

Fig. 5 – “Veduta di Arco”(1495)
No oriente, a relação com a natureza foi sempre de entendimento, o ser humano era considerado parte integrante da mesma. A terra fértil e generosa em espécies fez com que os orientais acreditassem num espírito da natureza e terá sido esta ligação que desenvolveu o conceito e a própria paisagem dentro de palácios reais, como parques, viveiros de pássaros, etc.
No Renascimento, com a descoberta da perspetiva, por Brunelleschi, e depois por Leon Battista Alberti, a paisagem é submetida à análise científica, a passagem das três dimensões do espaço para as duas dimensões do suporte e a procura de certezas estabelecidas pela matemática, conduz a uma representação que é mais uma ilusão do que uma verdade ótica.
As formas regulares que constituem determinados objetos como por exemplo uma mesa quadrangular ou retangular, são percepcionadas em

Fig. 6 – Pietro Perugino
perspetiva, como losangos ou trapézios, o que mostra a diferença entre o conceito interiorizado das formas e como realmente as vemos no espaço.
Leonardo da Vinci, Dürer, entre outros, utilizaram uma placa de vidro com uma malha ortogonal para reproduzir os modelos dos objetos e dos edifícios enquanto tornavam visível as distorções proporcionadas pela distância e pelo ângulo, obtendo uma redução da escala à medida que a distância aumentava.

Fig. 7 – Albrecht Dürer
Na perspetiva não existe a visão bifocal, tudo acontece de um só ponto de vista, tudo está centrado num ponto que tudo controla e para onde todas as linhas convergem.
Quando Brunelleschi realizou as suas experiências e tentou controlar a natureza através da perspetiva, algo o surpreendeu: as nuvens. Não se confinavam ao novo modelo de paisagem, como se o céu e a terra não se entendessem quanto ao desígnio da paisagem.

Fig. 8
Mas o desenvolvimento do estudo da perspetiva e a ideia do Homem como medida de todas as coisas desenham novas formas de pensamento.
Traçada a régua e esquadro, a paisagem já não é do domínio de Deus, obedece a certezas matemáticas.
O Homem é o novo criador.
Ana Guerreiro
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