A presença da luz implica a presença da sombra.
A primeira, remete para um princípio, o princípio da criação e do divino.
Antes, apenas as trevas, as sombras.
Depois, a luz foi revelada e passou a ser adorada e venerada, representando o Bem, a crença na elevação a um mundo celestial.
A negação desta luz seria a negação a um mundo paradisíaco, a permanência num mundo demoníaco, de trevas e do pecado, cuja representação se encontra em bestiários, onde seres monstruosos e terríveis traduzem o imaginário mais sombrio.
Durante séculos, a arte edificou o divino, a luz, como forma de culto e caminho para a salvação e, as imagens representadas, apontavam o caminho.
O movimento do olhar que se desloca de Deus e se aproxima da natureza, levará ainda vários séculos.
Só no Renascimento, com o homem como medida de todas as coisas, há uma separação entre a luz do divino e a luz da matéria. A luz que projetará sombras, e cuja representação da realidade, dará a conhecer o mundo como um sítio escuro. Vários foram os artistas que desenvolveram um trabalho acerca desta questão da luz e da sombra, como por exemplo, Leonardo da Vinci, que tinha como objetivo dar a impressão de tridimensionalidade, através do claro-escuro, a imagens bidimensionais.Também Rembrandt ou Goya, cujas obras são marcadas pela intensidade da sombra.
Columbano Bordalo Pinheiro também se rodeou de ambientes obscuros para retratar os seus personagens.
Estes ambientes obscuros, em que as formas, ocultas pela penumbra, só, em parte, são desveladas, foi muito apreciado pelos orientais.
Desde a antiguidade que as pinturas, em vez de se pendurarem, eram enroladas e guardadas num compartimento escuro, só retiradas para a luz, em privado, para deleite de alguns. Este comportamento devia-se, não só ao gosto por um lado mais escuro da vida, como ao conhecimento que tinham do ser humano e da sua capacidade de admiração limitada.
Mas, dos vários artistas que desenvolveram essa estética, foi Lourdes de Castro quem verdadeiramente se debruçou sobre o conceito de sombra. Começou por fixar, no papel, objetos, tais como, bonecos, cabides, pequenas coisas, e passou, depois, para as telas, as silhuetas dos amigos, imortalizando-as.
As silhuetas ou sombras, remetem para aquilo que Plínio, o Velho, escreveu sobre a origem do desenho.
Refere, Plínio, que uma jovem vê a sombra do seu amado projetada pela luz de uma lamparina, na parede, quando este se prepara para a abandonar, e a jovem retem a sua imagem, desenhando o contorno da silhueta.
O desenho terá nascido, então, de um ato de amor.
A necessidade de segurar o que se prepara para partir ou de desejar a presença de quem está ausente poderá ser lido, também, na obra desta artista. Querer o que não se tem, ficar apenas com uma parte, com a sua sombra.
Contudo, a sombra não é, para Lourdes de Castro, uma mancha cinzenta e fria, uma vez que a cor está, por vezes, presente em várias sombras, há uma aceitação do que fica, e por isso, guarda os gestos dos amigos. São gestos simples do dia a dia, como fumar um cigarro, ler um livro, pentear o cabelo, que são fixados, primeiro, na tela e, depois, em plexiglas (uma espécie de acrílico) como que querendo acrescentar materialidade àquilo que é efémero e frágil.
A sombra já não acarreta o peso dos séculos, os impressionistas retiraram-lhe essa carga, ao pintá-las, não com tons escuros, mas com fortes contrastes cromáticos, de acordo com as cores complementares.
A sombra condicionou, ao longo dos tempos, a maneira do ser humano olhar o mundo e de se olhar a si próprio. Os pensamentos e comportamentos mais sombrios foram reprimidos e relegados para uma zona escura e espessa de cada indivíduo, formando uma outra entidade, um negativo do próprio ser. E esta ideia de negativo remete para o conto “A História Fabulosa de Peter Schlemihl”, que fascinou a artista, em que a privação da sombra é vista como uma desgraça que se abate sobre um homem, um homem sem sombra é uma maldição, uma incompletude, alguém que vive à margem do seu negativo.
Os negativos da Lourdes de Castro são outra coisa, algo que não remete para uma zona escura, mas, com os quais convive.
De tal forma os estuda e se debruça sobre eles, quase obsessivamente, que os leva ao extremo, depurando-os até serem pouco mais que uma linha, uma fronteira entre a forma e o vazio, ou entre a matéria e a alma.
O interesse pelo teatro de sombras chinesas proporcionou-lhe a criação do movimento. Não são marionetas, é a própria artista que se projeta a si própria.
O seu trabalho de sombras passará para outra etapa, da vertical para a horizontal, da parede para os lençóis, onde bordará as silhuetas dos amigos, sempre os amigos.
Ana Guerreiro
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