Em 2009 as notícias, com origem no gabinete do então 1º Ministro José Sócrates, anunciavam, triunfantes, o próximo estabelecimento na Comporta de um dos mais considerados e internacionais artistas contemporâneos, o alemão, Anselm Kiefer. A exclusiva e cosmopolita faixa do litoral alentejano receberia em breve a “floresta cultural” que, deslocalizada de França, abrilhantaria o pacato sítio e, sobretudo, o governo socrático, responsável pela fixação em território nacional do “grande criador mundial”.
Anselm Kiefer, nascido em 1945, é o segundo artista vivo a integrar as coleções permanentes do Museu do Louvre (o primeiro foi George Braque, há cerca de cinquenta anos atrás), facto que por si é elucidativo do reconhecimento deste artista neoexpressionista. Polivalente, Kiefer foi também o autor escolhido pela França, país onde se fixou nos últimos anos, para criar e encenar a obra comemorativa dos 20 anos da ópera da Bastilha em Paris. Premiadíssimo, representadíssimo, e muito controverso, o artista costuma passar férias na Comporta onde possui uma propriedade. Depois de 14 anos a trabalhar num espaço com 100 hectares em Brajac (sul de França), onde estava instalado o seu ateliê, “La Ribaute”, mudar-se-ia então com a sua parafernália artística para o “Vale Perdido”, nome da herdade alentejana onde se iria fixar. Dadas as características algo “dramáticas” do seu trabalho, que podem transformar, ou mesmo escalavrar, a paisagem, e visto o espaço ser rural e protegido, foi necessário a execução de um Plano de Intervenção em Espaço Rural, plano que as autoridades competentes, o Município de Alcácer do Sal e a CCDR do Alentejo entre outras, ficaram de apreciar. E é tudo, ou melhor, e foi tudo. Ao que sabemos, Kiefer trabalha ainda em França, mas agora numa zona da periferia de Paris. O que correu mal para ter sido frustrada a tão badalada mudança? Falta de patriotismo do Grupo Espírito Santo, proprietário da Herdade da Comporta? Falta de visão estratégica da Câmara de Alcácer? Da crise, que já alastrava? É bem verdade que a concorrência é agressiva, e os franceses sabem bem quanto vale a arte. A “floresta cultural” de Brajac, um site specific que marca indelevelmente o espaço da França meridional, é agora um polo do Museu Guggenheim.
A intensidade é o traço definidor da obra deste artista plástico – pela dimensão das obras, desmesuradas, pela variedade de suportes, telas, fotografias esculturas, assemblage e instalações, compondo um todo coerente de dimensões gigantescas; pelos materiais, de natureza orgânica, como a terra, as palhas, os cacos e as cinzas, ou minerais, como as placas de chumbo e doutras ligas, por vezes incandescentes, ou ainda o betão, o vidro ou o espelho; e também pela sua dimensão conceptual, narrativas épicas de conteúdo mitológico ou esotérico. Tudo isto produzido à custa do trabalho de equipas numerosas, que manejam retroescavadoras, helicópteros, guindastes, picaretas e também pincéis (mais das vezes na variante vassoura, mais adequadas ao tamanho das telas). Os seus ateliês assemelham-se a estaleiros de obras intermináveis, onde, quer em longos túneis ou em construções distorcidas, as “florestas” mobilizam os densos temas da mitologia teutónica, da mitologia bíblica e sobretudo da cabalística, estas últimas muito polarizadas na figura de Lilith.
Neste “apocalipse segundo Kiefer,” o artista é uma espécie de senhor do universo, com tanto de Vulcano (ou Hades), como de Neptuno ou Júpiter, que diligentemente vai compondo submundos, em tons de cinza e ocre, que tanto contrastam com o verde da paisagem rural em que se inserem. A atmosfera fria da “floresta cultural” incomoda. Imaginem-se 110 camiões com material pesado e variado, fólios (livros) de chumbo com 300kg, sobre os quais se deixam cair elementos metálicos de várias toneladas que os deixam amarrotados e inertes na paisagem. Imagine-se uma infinidade de câmaras subterrâneas iluminadas pontualmente através de fendas estrategicamente perfuradas, imaginem-se escadas para sítio nenhum e estruturas como a Torre de Pisa, de equilíbrio instável, esventradas e desabitadas. Não há dúvida – em Kiefer o sentido do caos coexiste com o da composição.
Nas suas composições o passado confronta-se com o presente e também com o futuro, confronto profeticamente resumido na frase bíblica “Over your cities, grass will growth” (A erva crescerá sobre as vossas cidades), título de um documentário de Sophie Fiennes sobre a sua floresta cultural em Brajac.
Kiefer assume-se como artista alquímico, visto que é essa pratica que evoca ao trabalhar com metais e fornalhas – tenta extrair espírito da matéria. Para a alquimia, o chumbo é dentro dos metais o elemento mais baixo, por isso para Kiefer ele é a alegoria do humano, matriz impura e ambígua que, partindo do mais baixo nível, pode contudo transformar-se e alcançar patamares mais elevados, talvez até o ouro.
História e identidade germânica, tragédia e redenção, são os temas mais presentes em Kiefer, pelo que o Holocausto não pode deixar ser o tema central na sua obra, tema que de forma arrojada, mas também ambígua, foi dos primeiros a abordar no pós-guerra alemão. Para isso inspirou-se na obra lírica e hermética de Paul Celan, poeta neossimbolista, filho de judeus de língua alemã mortos em campos de extermínio nazis, dos quais o próprio conseguiu fugir. A obra mais célebre de Kiefer, Margarete, é inspirada no poema Todesfuge – Fuga da Morte, de Pau Celan, uma alusão ao Holocausto.
Para já o Alentejo não experimentará os processos criativos deste artista alquímico. Ficaremos sem saber como seria a floresta cultural versão Comporta, como conviveriam Brunildas e Siegfrieds com os seus cálidos pinhais e arrozais.
Cristina Teixeira
Parabéns por este “Morte da Estética (14)”. Gostei. Fiquei com vontade de ler mais e é isso que vou fazer. 😉